Cultura & Lazer Titulo
De bem com a história
Por Alessandro Soares
Do Diário do Grande ABC
05/11/2005 | 09:14
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Celso Lungaretti lutou de 1968 a 1970 contra a ditadura e a tortura, e os 34 anos posteriores para ser reconhecido como vítima da repressão, e não como o renegado que iniciou a queda da militância armada. Ano passado, a partir de um relatório do Exército divulgado no site resgatehistorico.com.br, Lungaretti respirou aliviado – não foi ele o responsável pela sucessiva prisão de militantes da VPR (Vanguarda Popular Revolucionária), liderada pelo ex-capitão do Exército Carlos Lamarca. Em 1970, sob coerção, o então estudante secundarista Lungaretti foi obrigado a participar de uma farsa montada pelos repressores: apareceu na TV e na imprensa como "arrependido" e pediu aos jovens que não entrassem para a luta armada.

Virou a ovelha negra da esquerda brasileira até ter seu direito reconhecido ano passado pela Comissão de Anistia do Ministério da Justiça como vítima do Estado. Em dezembro, passará a receber sua pensão vitalícia. Tem um tímpano estourado de tanto apanhar e a consciência de que a luta armada estava perdida e a esquerda queimava seus melhores quadros numa luta de extermínio. "Não fui eu quem empurrou o dominó para as peças caírem", diz.

Na próxima quinta-feira (dia 10), Lungaretti, 53 anos, lança o livro Náufrago da Utopia (Geração Editorial, 304 págs., R$ 39) na Livraria Saraiva do Shopping Morumbi, em São Paulo. Ele criou um e-mail (naufrago-da-utopia@uol.com.br) para os leitores e uma comunidade no Orkut. "Quero que o público me diga o que fiz de bom ou ruim, que eu possa melhorar numa outra edição". O livro tem prefácio do dramaturgo Luís Alberto de Abreu, de Ribeirão Pires, e narra em terceira pessoa como Lungaretti, codinome Julio, fez movimento estudantil e entrou para a luta armada sem participar de ações, e suas posições contrárias à de outro líder dos estudantes da época, José Dirceu.

DIÁRIO: O sr. se considera quite com a História e o Estado?
CELSO LUNGARETTI: Durante 30 e tantos anos a verdade esteve guardada em arquivos secretos. Em 1994, o jornalista Marcelo Paiva me chamou de delator. Polemizei com ele e as autoridades cruzaram o braços – era impossível que a Abin (Agência Brasileira de Inteligência) tenha ignorado, pois eles têm tudo em seus arquivos. O Estado me prejudicou muito. A Comissão de Anistia começou me ignorando, deixando para trás. Houve favorecimento explícito a celebridades (cita o jornalista Carlos Heitor Cony) e sindicalistas do ABC. Os processos seguiam até certo ponto a ordem de ingresso, mas julgaram os sindicalistas em bloco. O processo do José Dirceu foi julgado antes do meu. Depois de tanta reclamação em ongs, imprensa, Congresso, entrei em 2001 com o pedido e em outubro passado saiu portaria do Ministério da Justiça. Acho que o depoimento do Jacob Gorender (historiador e militante) no fim do ano passado, a partir da revelação dos arquivos do Exército, foi decisivo para me inocentar de uma culpa de mais de 30 anos. O próprio Sindicato dos Jornalistas, então indiferente, passou a me ajudar. A comissão concluiu que meu caso era um dos que evidenciavam uma vida prejudicada e comprometida pela ditadura. Em dezembro devo começar a receber uma pensão do Estado. O conselheiro Marcos Gontijo afirmou que eu fui duplamente atingido pela ditadura. O que individualizava meu caso tinha sido o papel que fui obrigado a fazer sob coerção, o que gerou o preconceito sobre mim. Era muito evidente o estigma. Eu fazia testes, passava, e não me chamavam para trabalhar.

DIÁRIO: Como foi fazer papel de arrependido?
LUNGARETTI: Fiquei dois meses incomunicável sob tortura. Cinco presos haviam mostrado arrependimento. Me disseram que, ou eu escrevia alguma coisa aconselhando jovens a não entrar na luta armada, ou eu morreria no pau. O que significa ter um ouvido ruim a vida inteira e tendência a labirintite? Não posso me estressar ou tomar bebida alcoólica, pois a tontura me deixa de cama uma semana. Tiraram fotos à época para divulgar para a imprensa, mas viram que tinha sangue escorrendo do meu ouvido e fizeram outra. Parecia que eu tinha estado em Auschwitz. Cheguei com 85 kg e estava com 60 kg, olhos fundos. Eu considerava a guerra perdida, tinha medo que jovens entrassem à toa para morrer. As pessoas experientes não entravam mais porque sabiam que era cair direto no inferno. Me sentia culpado porque levei gente para lá e não podia estar por perto quando morreram. Eu estava preso nas mãos dos caras e a esquerda começou a jogar culpa em mim. Não tinha como me defender. Por conveniências, a VPR achou que uma pessoa deveria levar a culpa e quem tinha "atacado" a organização era a pessoa ideal.

DIÁRIO: O sr. acredita que a culpa pela prisão dos militantes imposta por Lamarca a você tornou-o um Tiradentes às avessas, que pagou sozinho por um ideal?
LUNGARETTI: Lamarca era um abnegado pela causa, mas precipitado, impulsivo. Nunca pretendi assumir esse papel, não era meu desígnio. Na sucessão de quedas do mês de abril de 70, meu nível de contato era periférico na estrutura da VPR. Meu papel praticamente não existe. Não fui eu que empurrou o dominó para as peças caírem. No episódio do seqüestro do embaixador alemão, eu tinha expectativa de ser incluído na lista de troca (presos políticos pela liberdade do embaixador). A própria repressão tinha apressado meus documentos de extradição e a Inteligência do Exército ordenou que não torturassem mais os possíveis listáveis para mostrar ao exterior que todos estavam bem. Para surpresa geral, não entrei na lista. Passei a apanhar mais ainda, depois de dois meses voltei a ser torturado com raiva.

DIÁRIO: Você encontrou seus torturadores?
LUNGARETTI: Só no noticiário. O Capitão Guimarães, expulso da polícia junto com o tenente Aylton Joaquim no episódio dos rapinantes da Vila Militar (policiais militares pegos pela Polícia Civil extorquindo contrabandistas), virou banqueiro do jogo do bicho no Rio e foi mandado para a prisão pela juíza Denise Frossard, junto com outros contraventores. Piada do destino.

DIÁRIO: O que o sr. acha das bandeiras do movimento estudantil, que está protestando, por exemplo, contra a visita do presidente George Bush?
LUNGARETTI: Ignoro muitas coisas do estágio desse movimento, mas existe um quadro novo. Em 1968 lutávamos contra o acordo MEC-Usaid, contra a privatização do ensino porque isso nos colocaria sob jugo do exterior. Acho que o fator para a mobilização dos estudantes não deve ser fatos bombásticos como a visita de Bush. Acho que a situação das carreiras é mais importante. As pessoas precisam estudar 20 anos, fazer pós, doutorado, MBA para ser pago de forma ridícula em um mercado extremamente saturado. A problemática do dia-a-dia é muito mais importante, que as carreiras voltem a ter respeito, que o saber volte a ser respeitado. Esse tipo de luta, de valorização da profissão, do saber, da função crítica que as profissões de nível universitário deixaram de exercer, contra uma economia que é um paradoxo, que alija pessoas. Gostaria de ver o movimento estudantil reagir contra o capitalismo globalizado. É contra isso que se deveria lutar. Bush vem, todo mundo faz alarido, ele vai embora. O que fica é que tem de ser combatido.

DIÁRIO: O sr. se surpreendeu com a esquerda no poder?
LUNGARETTI: Na esquerda, uma das coisas mais chocantes para mim foi ter sido discriminado pelo passado, ao passo que o assalto aos cofres públicos passou acobertado. Me filiei ao PT quando o partido nem tinha obtido registro. Houve o caso Paulo Venceslau, economista que denunciou o esquema das prefeituras petistas de contratar consultorias e reverter recursos para o cofre do partido. Foi terrível ver Roberto Teixeira, que encabeçava o esquema, ficar e o cara que denunciou o esquema, ex-guerrilheiro, ser expulso. Na hora que poderíamos ter esmagado o ovo da serpente, ele cresceu. Saí em 1989. A esquerda sempre defendeu que fins e meios se interpenetram, que um fim nobre não justifica um meio torpe. A partir da prefeituras, o PT começou a inchar. Em 2002, o PT chegou ao poder privilegiando a economia liberal que vai contra as expectativas dos trabalhadores. Foram de concessão em concessão, abandonando as teses. Isso não é esquerda, é centro-direita que desenvolve uma política assistencialista que transforma política social em esmola para desesperados e excluídos. A esquerda pregava que esmola não resolve. Para nós, era sempre a direita que roubava e trapaceava. Quando a esquerda chega no poder faz igual? Não posso crer. Do PT se esperava algo diferente do que do Maluf.

DIÁRIO: Está filiado a algum partido?
LUNGARETTI: Depois desse mar de lama me filiei ao PV. Não para ter um cargo, mas para ser um anticandidato, como Ulysses Guimarães em 1974, para motivar uma discussão política e o debate de idéias. Faria esse papel com prazer.

DIÁRIO: Heleny Guariba, atriz e diretora de teatro criadora do GTC em Santo André foi sua companheira no setor de inteligência da VPR. Como foi a convivência?
LUNGARETTI: Eu tinha três principais auxiliares, ela era uma das mais confiáveis. Me ajudou a escolher a roupa para disfarçar minha aparência, tingir cabelo. Era quem eu mais confiava. A respeitava muito, uma companheira estimada. Seu caso foi chocante (presa em 1971, ainda está desaparecida. Teria sido levada para o centro de tortura conhecido como Casa de Petrópolis, cedida por um empresário local da cidade histórica fluminense). Heleny era solidária, fazia o possível e queria correr riscos e dar uma contribuição maior. Foi presa uma vez e acabou saindo. Mas a partir do seqüestro do embaixador suíço, a repressão começou a executar o extermínio para evitar rearticulação da esquerda. Da primeira vez que Heleny saiu teria feito bem em buscar outro país, mas ela ficou de forma heróica. Tinha uma coragem e força de caráter incrível. Jarbas Passarinho disse que houve uma guerra e nós perdemos. Perdemos, sim, mas foi uma guerra desigual. Partiram para o extermínio e para que aquelas pessoas nunca mais voltassem. Temos de evitar a todo custo que se repita. Isso era muito pior do que as pessoas vivem hoje. O cidadão podia ser morto se acelerasse perto de um quartel ou passasse embriagado. A repressão atingia a militância, pessoas solidárias e quem estivesse na rua. A esquerda queimou seus melhores quadros na luta armada.

DIÁRIO: A luta continua?
LUNGARETTI: Não mudamos o mundo e sofremos cruelmente o pior do mundo. Não quer dizer que a gente não se erga. Foi terrível, perdemos em todos os sentidos, físico, moral, ideal, psicológico. Aquela coisa toda foi um Titanic terrível. Vimos os melhores sonhos e esperanças nobres sossobrarem daquela maneira. O destino foi trágico principalmente para esse grupo secundarista que entrou na luta no momento errado. O primeiro jovem que batia na porta recebia um fuzil, e depois de duas horas de palestra, e de gastar uma caixa de balas atirando em latas, estava pronto. O que eu puder fazer para reverenciar pessoas que merecem estar no coração do povo vou tentar fazer. Massafumi (Yoshinaga, acusado por Lamarca junto com Lungaretti), por exemplo, que era uma pessoa alegre e se matou porque não agüentou viver com a pecha de traidor. Essa tragédia gostaria que ficasse clara. Há muito o que resgatar, muitos depoimentos para colher antes que as pessoas morram. Mais do que nunca é necessário mudar o mundo, mas não ser ingênuo entrando de peito aberto. Tem de ter avaliação honesta, saber se está a altura, comprar a barra e saber se vai agüentar. No Brasil a gente costuma cometer os mesmos erros em história.




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