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Novo longa de Spike Lee lê a NY pós-11 de Setembro
Por Cássio Gomes Neves
Do Diário do Grande ABC
24/03/2006 | 08:43
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Spike Lee e um heist movie (expressão usada para filmes cuja principal ação dramatúrgica é um assalto). A combinação pode soar inusitada, mas o tempo passa, o tempo voa e Lee, cá entre nós, não poderia ficar atado à combinação discurso/estética que lhe fizeram a fama em Faça a Coisa Certa e Malcolm X. Mas também não guinou para outras bandas sem mais nem menos. Seu discurso continua, afiliado a dissonâncias étnicas; mas evoluiu, sofisticou-se, a ponto de o diretor conseguir fazê-lo ser assimilado em um "filme de assalto", este O Plano Perfeito que estréia nesta sexta-feira. Por sinal, não é filme de assalto qualquer.

O novo Spike Lee vem depois de Elas Me Odeiam Mas Me Querem, lançado no Brasil diretamente em DVD e mais alvejado que pára-brisa em temporal por críticos fiados na crença de que o cineasta deveria fazer Febre da Selva 7 – O Retorno. Era um filme quase fantástico, um semibesteirol, uma comédia desafiante que vinha após o fino A Última Noite. Mas havia um discurso uno, uma responsabilidade de apreender o status comportamental de sua época. O Plano Perfeito apresenta-se como uma outra forma de refinamento desse compromisso.

Abre-se o filme com um monólogo de Dalton Russell (Clive Owen), numa breve dissecação de como realizar o assalto a banco perfeito. Não coincidentemente, sua descrição do crime futuro alinha-se a uma descrição dos recursos primários para tornar verossímil uma história, seja ela contada em que suporte for (tela, livro, palco...). Spike Lee, que completou 49 anos esta semana, sabe da necessidade que o cinema de ação, para se reinventar dramaturgicamente, tem de solucionar assassinatos em série, fugas impossíveis e assaltos inexeqüíveis. Esse jogo lúdico, de propor e matar charadas, é também atribuição do cinema, por mais que se negue.

No filme, a solução do plano do assalto impossível é simples, não vulgar. Até porque, mais do que lograr êxito no filme de assalto, Spike Lee pretende tomar o gênero como um novo painel de suas inquietações como homem e cineasta. E sua preocupação é clara: Nova York, sua terra, seu lar, e como ela ficou depois da gripe que baqueou os direitos civis nos Estados Unidos após o 11 de Setembro.

A pólis perfeita – Dalton e três cúmplices, disfarçados de pintores de parede, invadem um banco em Manhattan e tomam 50 pessoas, entre funcionários e clientes, como reféns. O detetive Keith Frazier (Denzel Washington) é designado para negociar a crise e comandar as forças policiais do lado de fora. Paralelamente, o fundador e presidente do banco sitiado contrata Madeliene White (Jodie Foster), uma mulher que presta serviços misteriosos e freqüenta gente influente como o prefeito nova-iorquino para resgatar um sombrio documento guardado no cofre do lugar.

Superficialmente, é o ziguezague de ardis e provocações entre o assaltante-chefe e o detetive de polícia, com o insistente assédio da tal Madeliene White, o eixo de O Plano Perfeito. Superficialmente. Porque Lee pretende elaborar uma tapeçaria sobre Nova York enquanto pólis (por sua organização social, econômica e política) e depósito de etnias e idiomas distintos. Lee sonha com uma cidade que, pelo menos no plano das relações humanas (na rua, melhor dizendo), assimile as diferentes de cultura e de melanina de seus cidadãos. Já basta a intolerância oficial, o preconceito estatal, agravado pelas suspeitas, legitimadas pelo Estado, de que todo barbudo ligeiramente mais bronzeado é um terrorista com nitroglicerina escondida nas meias.

Comprovantes desse chamado à razão não faltam: o alarido babélico dentro do banco, com línguas hispânicas, orientais e judaicas; o pedido de socorro da polícia, junto à população da cidade, para reconhecer o idioma com que os assaltantes supostamente se comunicam; o puxão de orelha que o detetive Frazier dá em um colega racista. Mas uma cena é determinante: um dos reféns, quando libertado, é chamado de árabe e prontamente algemado por suas feições. Ele insiste que é um sikh (religião indiana), sem resposta. Durante o interrogatório, os policiais pressionam para que ele detalhe o cenário no interior do banco. Ele recusa-se até que lhe devolvam o turbante subtraído quando foi preso. O conflito persiste, no limite da comédia.

Spike Lee sabe desses ruídos existentes entre o pacto sociocultural que é o gás de seu cinema e um gênero inédito para ele como realizador. Em O Plano Perfeito, usufrui da estrutura do filme de assalto para radiografar Nova York, com a trama que envolve o presidente do banco (e que não será aqui revelada para preservar o prazer do "final"). Basta dizer que O Plano Perfeito é o indicador de Lee apontado para a formação da hierarquia social quando instaurada na intolerância étnica, representada pelo segredo do banqueiro. Um sigilo que só vem à tona pela ação de um criminoso (o assaltante), pelo menos em tese. É a nova ordem dos olhares nos Estados Unidos, em que cidadãos-modelo são suspeitos e os suspeitos são agentes da justiça. Quase perfeito.

O PLANO PERFEITO (Inside Man, EUA, 2006). Dir.: Spike Lee. Com Denzel Washington, Clive Owen, Jodie Foster, Willem Dafoe, Christopher Plummer. Estréia nesta sexta-feira no ABC Plaza 1, Shopping ABC 3, Extra Anchieta 4, Central Plaza 10 e circuito. Duração: 129 minutos. Censura: 12 anos.




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