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MV Bill lança versão impressa de ‘Falcão’
Alessandro Soares
Do Diário do Grande ABC
04/04/2006 | 08:28
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Uma boa noite de sono não é condição permitida a um Falcão, pois ele tem de manter os olhos abertos. Nem MV Bill conseguiu dormir após conversar com alguns dos meninos que trabalham para o tráfico em várias capitais brasileiras, nem Celso Athayde teve um sono normal. Inicialmente previsto para se chamar Falcão Não Dorme, Falcão – Meninos do Tráfico, o livro (Objetiva, 251 págs., R$ 33,90 em média nas livrarias ou R$ 20 mais despesas de postagem pelo tel.: 21 2458-8311) tirou o sono do rapper e do produtor musical, enquanto a vida dos meninos entrevistados era tirada uma a uma – dos 17 que eles conheceram apenas um está vivo.

O realismo impressionaria um Raymond Chandler ou Manuel Vazquez Montalbán. Nem Rubem Fonseca nem Luiz Alfredo Garcia-Roza captaram uma intensidade tão real e tão crua do universo brasileiro do crime. Bill e Athayde narram em relatos pessoais mesclados com entrevistas tipo pergunta e resposta, histórias para crianças não dormirem e adultos refletirem. E nada é ficção.

Nesta quarta-feira, MV Bill lança o livro e bate papo com a comunidade da favela Real Park, às 10h, em São Paulo; na quinta (dia 6), o lançamento é na Afrobrás, às 18h; finalmente sábado (dia 8), às 18h, o rapper estará na Livraria Cultura do Shopping Villa-Lobos (av. Nações Unidas, 4.777, São Paulo). São algumas etapas do projeto – mostrar a visão de jovens sempre considerados culpados e provocar alguma reação na sociedade – desdobrado a partir do documentário de mesmo nome exibido em partes há duas semanas pelo Fantástico, da Rede Globo, e que está sendo editado como longa-metragem intitulado Falcão – O Bagulho É Doido, com estréia nos cinemas em outubro. Se será comercializado ou se terá sua exibição liberada para execução pública, os dois ainda não sabem. Assim como é incerto o futuro das crianças do tráfico, já que autoridades municipais, estaduais e federais mal se pronunciaram a respeito da denúncia de Bill e Athayde.

Quando Raymond Chandler fez seu detetive Sam Spade ir em busca do Falcão Maltês, certamente não imaginou que os falcões que inundariam a crônica policial nos trópicos não teriam nada de ficção. Crianças usadas por traficantes de drogas como "falcões", vigias posicionados nas favelas para avisar aos gerentes das bocas de fumo e cocaína sobre a movimentação – quem entra, quem sai etc. Como estão na linha de frente, conhecem desde cedo os armamentos pesados e as únicas certezas de suas vidas: ou matam ou morrem aos 13, 15 ou 17 anos. Ir preso ou ficar aleijado são as outras opções.

Bill e Athayde contam suas impressões em primeira pessoa, uma narrativa com crueza real a partir das drogas que nem Charles Bukowski ou Jack Kerouac ousaram relatar em suas viagens. É uma realidade sem fantasia, que aguarda análises aprofundadas da comunidade acadêmica e soluções imediatas e de longo prazo. A narrativa envolve como uma boa ficção de ação, com naturalismo – a fala dos "manos" das "quebradas", os "noiados" pela droga e o "papo de band" são reproduzidos integralmente – e realismo constantes que mantêm o leitor atento e ao mesmo tempo chocado com esses atentados à dignidade humana.

Foram seis anos de contatos, medos e entrevistas. Durante os shows que faziam pelo país, MV Bill e Athayde junto ao câmera Felha procuraram essas crianças em seus postos. Desceram ao inferno algumas vezes – testemunharam seqüestro em andamento e batida policial em prédio desabitado ocupado por viciados. Às imagens captadas – 217 horas de gravação – seguiu-se a versão reduzida cedida a Globo, que se tornarão outra história no cinema. Ambos viveram em contato direto com essa realidade no Estado do Rio de Janeiro – Bill nasceu e ainda vive em Cidade de Deus; Athayde é da Baixada Fluminense e cresceu na Favela do Sapo. É justamente para evitar que a violência urbana se torne banal que o projeto Falcão tenta acordar sentimentos adormecidos.

Confira um trecho:

Chegamos na boca de fumo às duas da manhã. Era a mesma tensão de sempre. Esperar a saída dos canas, ter certeza de que não haveria confrontos naquela madrugada, negociar com os garotos para ver quem falaria conosco e, claro, convencê-los de que esse trabalho era importante para todos nós. Por fim, tínhamos que estar convencidos de que não havia nenhuma pressão dos chefes para que os meninos falassem com a gente. Nessa noite, fazia muito frio, eu estava sem casaco e, como em muitas outras ocasiões, rezava para que surgisse algum problema que nos impedisse de trabalhar. Era como ir ao encontro de alguém torcendo para que esse alguém não aparecesse. Mas não, o Falcão estava lá, agachado, alerta.

Ele estava sobre uma laje, era uma cena de filme: tudo escuro, ele não via o lado de fora da favela, só umas ruas e uns becos dentro dela. Segundo ele, muitos ‘amigo’ já tinham sido surpreendidos pelos policiais ou pelos ‘mineiras’, que invadiam a favela pelos fundos de um condomínio fechado. Ele acusava os moradores desse condomínio de facilitarem a passagem da polícia, embora outros meninos dissessem que os moradores não gostavam que os canas entrassem por lá.

Por causa da escuridão, a imagem ficou uma merda, distorcida. Mas não tinha outro jeito, valia o áudio. De repente, uma puta explosão ao fundo. Pra mim, parecia o fim do mundo, pro Falcão, uma coisa normal. Do nada, ele falou que, se der mole, o demônio vem e rouba as nossas vidas. Com um AR-15 na mão, fumava um cigarro. Mal dava pra ver que ele estava com um capuz.




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