Cotidiano Titulo
Solidariedade
Rodolfo de Souza
01/02/2018 | 07:00
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 O trabalho de um cronista, como se sabe, começa com a atenção sempre voltada para os fatos corriqueiros que preenchem o seu dia a dia, conferindo-lhe riqueza poética suficiente para rabiscar incansavelmente alguns quilos de papéis como esta folha sobre a qual despejo sem dó a tinta da minha caneta. Também, é preciso estar atento para não permitir que alguma inspiração fujona passe ligeira e lhe escape das mãos. Aquela que é a substância da qual necessita o escritor para transformar em palavras o que lhe vai no coração e que, não raro, faz morada também no peito do leitor.

Falava noutro dia, por exemplo, do ser humano que passa toda uma vida dedicando-se à sublime arte de lesar o semelhante, acumulando riqueza que por direito pertence ao outro, mas da qual se apropria, porque, segundo o seu entendimento, é dotado de incontáveis dons divinos que aos demais foram negados pelo destino que sequer lhes concedeu o direito de reclamar.

Mas agora há pouco, algumas horas antes de eu deitar a pena neste papel, enquanto a madrugada ainda desempenhava a sua função de tudo tornar calmo e quieto, eu apreciava a magia do mar noturno e do vento forte que quase me carregava como fazia com as folhas secas. De pé na areia, esquecido de fatos que diante da natureza me soam distantes e irrelevantes, eu apreciava a fúria que balançava os barcos de homens que deles tiram o sustento. Homens fortes que, volta e meia, os conduzem para a terra a fim de cuidar dos reparos necessários para a lida.

E, como se estivesse cansado dessa lida, lá estava ele, protagonista da minha madrugada, à deriva na areia. O pesqueiro encalhara com a proa voltada para fora do mar, como se empreendesse esforço supremo para retornar à sua origem de madeira sem forma de barco. Fora arremessado pelo vento e pela maré brava, ao que tudo indica. Mesmo assim, rescendia felicidade por estar ali na praia. Não precisou da mão humana para experimentar a sensação de estar novamente em terra firme, ele que não nascera no mar como os peixes. Carregava ainda, encalacrado no casco, o resultado de meses na água: detritos que o mar deposita ao longo do tempo.

E a manhã ia longe quando os pescadores se reuniram, porque consideraram suficientemente alta a maré para que a embarcação pudesse ser reconduzida à estrada que talvez nem desejasse mais percorrer. Mesmo assim, juntei-me a eles. Havia no ar um afã de solidariedade embalada também pelas latas de cerveja que moviam os homens determinados a recolocar o velho barco no rumo certo, independentemente de sua vontade. A batalha que se seguiu foi dura.

Houve muita gargalhada e troça uns dos outros na tentativa de virá-lo de modo que ficasse com a proa voltada para o mar. A cada sequência de vagas seguiam-se gritos e assobios que levavam o pessoal a exigir tudo o que podiam dos seus músculos.

Batalha vencida e nova luta foi preciso travar para empurrá-lo adiante. Quilha e hélice enterradas na areia não ajudavam muito na empreitada e exigiam muitas ondas, balanço e mais força ainda de músculos exaustos motivados agora pela peleja que colocou o barco no rumo certo.

Mais uma vez gritos, gargalhadas e assobios foram fundamentais no trabalho fortalecido pelo espírito solidário daquela gente que deixa tudo de lado quando o assunto é ajudar o companheiro de estrada.

Sentimento forte e contagiante que também acabou por me envolver em mais uma aventura nesta vida de cronista, que tem sempre o que contar.  




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