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'Alfie' revive o mitos de Casanova em Nova York
Cássio Gomes Neves
Do Diário do Grande ABC
17/12/2004 | 10:51
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O mito de Casanova - que nem lenda é, porque o sujeito existiu de fato no século XVIII sob o prenome Giacomo, e registrou suas aventuras em volumoso livro - perdura até hoje. Fellini o retratou em 1976, sem desfigurá-lo nem rebatizá-lo. Charles Shyer o retrata agora em Alfie - O Sedutor, mas o nome, as presas e as circunstâncias são outros. No filme que estréia nesta sexta em uma sala da região, o conquistador Alfie (Jude Law) é Casanova reencarnado, tão priápico quanto, embora operante na Nova York do século XXI.

Alfie - O Sedutor é refilmagem de Como Conquistar as Mulheres (1966) e Jude Law assume a casaca que na década de 1960 coube a Michael Caine e lhe rendeu uma indicação ao Oscar. O Alfie que ambos representam é criação do dramaturgo Bill Naughton. Extraídas a argamassa e a repintura, é Casanova quem se manifesta por meio dos dois.

Alfie trabalha como motorista para uma empresa que aluga limusines e tem juntado os trocos para tentar um vôo solo no ramo, junto ao futuro sócio Marlon (Omar Epps). De início, os aspectos profissionais do protagonista podem não parecer tão importantes à trama quanto seu ativismo pró-acasalamento.

Em meio aos safáris sexuais que empreende, musicados pela trilha sonora criada por Mick Jagger (possível concorrente ao Oscar), Alfie a toda hora dirige-se ao espectador, usa a platéia como ombro amigo ou talvez como variante da caricatura de psicólogo freudiano, que ouve para curar e raramente emite um pio, a não ser para dizer: "Seu tempo acabou".

Alfie pode ser chamado de filme em primeira pessoa (se bem que esse conceito em cinema é bastante flutuante). Seu protagonista, nas confissões ao público, descortina seu caráter e ensaia autocríticas. Medita sobre suas ações e sobre si, enquanto frustra um arremedo de namoro com Julie (Marisa Tomei), uma espécie de provedora emocional. Ou enquanto é frustrado pela milionária Liz (Susan Sarandon). Ou enquanto administra suas relações com uma loira maluquete, com uma malcasada carente, com a namorada de um amigo seu ou com qualquer outra que preencha sua nota de corte, baseada na tríade rosto, peito e derrière.

Parece, mas não é sexismo que se vê no filme de Shyer. Para cada ação do cafajeste, há uma reação; não exatamente uma vingancinha explícita, mas um revide interior, de um homem em confronto com a própria solidão que se divisa no horizonte dessa coletânea de amores sem sufixo. Se o diretor, ao princípio de Alfie, reproduz os estados de espírito do protagonista em outdoors que estampam palavras como "desejo" e "procura", ao fim da obra prescinde desse recurso para mostrar o crescente desinteresse que inspira na civilização um homem alérgico a ritos de maturidade.

O cineasta observa não só o envelhecimento desse protótipo de tio Sukita, mas do machismo e da egolatria que ele representa. Amizades, projetos profissionais, provedoras emocionais - tudo inviabilizado pelo ego. Nova York, antes abatedouro, agora casa de repouso. Alfie é o réquiem da imaturidade e do hedonismo, num tempo em que Casanova não teria vez, dada a hipocrisia de uma sociedade que se diz tolerante.




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