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Gringos e autoconhecimento em livros
Por João Marcos Coelho
Especial para o Diário
01/10/2005 | 07:59
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Chegam às livrarias dois livros que podem nos ajudar a nos entendermos melhor neste duro momento em que nossa auto-estima está lá embaixo. Nós quem? Ora, nós, os brasileiros, o povão que se entope pelo rádio, TV e jornais com maracutaias de todo tipo. Impressionante: agora elas transformam até grama bem-cuidada dos estádios de futebol em pântanos insuspeitados de corrupção. O juiz Edilson já levou um tapão quando foi solto, na última quarta-feira, aos gritos de "ele roubou meu Corinthians". E quem vai dar tapões nos chamados escalões superiores?

Bem, mas esta é outra história. Nosso negócio, aqui e agora, é procurar entender este samba do crioulo doido da nossa identidade nacional a partir dos livros Os Argentinos (Planeta, 136 págs., R$ 29,90) das jornalistas Márcia Carmo e Mônica Yanakiew, e Os Italianos (Contexto, 304 págs., R$ 43,90), do historiador João Fábio Bertonha.

Dos nossos irmãos de Mercosul temos a arrogância de que somos o país do futuro, que aqui tudo se resolve com jeitinho etc. E dos italianos, bem, dos italianos herdamos o chamado auto-esculacho, a tendência a nos menosprezarmos o tempo todo. A leitura desses dois livros nos ensina duas coisas básicas: 1) nem tudo está perdido, já que os argentinos, depois de descerem bem mais do que ao fundo do poço, conseguiram dar a volta por cima; 2) as coisas, definitivamente, não são como parecem. Os italianos, aos quais associamos a pizza, o Palestra e a macarronada do domingo, são muito mais do que isso.

Dois em um

Afinal, quem são os italianos? "Convivas barulhentos que decoram fartas macarronadas ou degustadores sofisticados de pratos refinados? Filhinhos dileto de mammas supersticiosas ou executivos competentes que criaram roupas, sapatos e objetos de design símbolos de elegância em todo o planeta? Pobres coitados vivendo sob o tacão de chefes mafiosos ou criativos autores de teorias revolucionárias?"

Estas são as perguntas que abrem um livro surpreendente sobre o tema. Escrito por um historiador - João Fábio Bertonha -, está longe do estereótipo de examinar apenas os italianos e o Brasil. Na verdade, Bertonha sintetiza um longo e minucioso trabalho de pesquisa sobre os italianos, desde antes de a Itália constituir-se como país até a realidade atual, passando pela política, economia e as artes e cultura.

Ele enfoca sobretudo os últimos dois séculos, essenciais para se entender melhor a vida italiana de hoje. "O que sabemos é que os italianos são um povo cujas realizações, especialmente artísticas, sempre foram impressionantes. Seus artesãos, arquitetos, pintores e escultores encheram a Europa e a América com igrejas imponentes, monumentos, pinturas e esculturas. Homens como Michelangelo, Leonardo da Vinci, Dante, Giuseppe Verdi e outros eram italianos".

De fato, é difícil alguém contestar o valor da arte e da cultura italianas. O problema é que este mundo de gênios convive com outra imagem desabonadora. "Um povo de pessoas pouco confiáveis, charlatões, derrotados em muitas guerras e incapazes tanto de resolver seus próprios problemas como de construir um Estado eficiente e, justamente por isso, pouco respeitado. Um povo que conseguiu sair da pobreza generalizada, mas que ainda é visto, em muitos locais, como fonte de pobres e emigrantes que um dia foi e que segue um modo de vida agradável, mas primitivo e pouco sério. Um povo, enfim, passível de ser amado, mas não admirado nem respeitado".

Em sete capítulos, Bertonha - que tem ascendência italiana, como este escriba, por sinal - esmiúça esta e outras questões que nos ajudam a entender como e por que somos, nós brasileiros oriundi ou descendentes de italianos, do jeito que somos.

Mitos e milongas

As jornalistas brasileiras Márcia e Mônica circularam por mais de uma década pela Argentina. A primeira foi correspondente do Jornal do Brasil em Buenos Aires de 1995 a 1998; e Mônica foi correspondente de O Globo de 1987 a 1989; voltou a Buenos Aires em 2000 e lá ficou até o ano passado, escrevendo para o Correio Braziliense e as revistas Época e Primeira Leitura. Elas conhecem, portanto, seu assunto. Sobretudo a capital Buenos Aires, a "Paris da América Latina".

O livro é simplesmente hilário, na proporção de várias tiradas humorísticas em cada página. Já na introdução, elas contam a reação em Buenos Aires quando anunciavam que estavam escrevendo um livro sobre os argentinos: "Impossível", segundo a cartunista Maitena. "Vai render mais que a Bíblia", disse Jorge Telerman, vice-chefe do governo da capital.

A versão for export, dizem elas, é que a Argentina, "terra do tango e dos suculentos bifes de chorizo, é uma fábrica de mitos. Produziu Gardel, Eva Perón, Che Guevara e Maradona". Mas o país é muito mais do que isso. Elas tomaram um táxi para o Teatro Colón, em 2003. "No trajeto, o motorista, Carlos Martínez falou de música clássica, opinou sobre a entrada de dez novos países na União Européia e criticou, com riqueza de detalhes, a estrutura de um luxuoso prédio na avenida Libertador". Acontece que, antes de guiar um táxi, ele foi arquiteto; e, antes ainda, dono de uma confecção que faliu. "Parecia típico portenho, com muitas vidas, licenciado en todo (formado em tudo) e seguro de si. Até perguntar: Vieram fazer o que neste país de mierda?"

Os Argentinos é livro que se lê de uma só vez, sem largar, tamanho o prazer e o interesse que a escrita fluente das jornalistas proporciona. E riqueza, muita riqueza de detalhes, piadas e informações. Maradona, que hoje brilha magrinho num programa de TV, por exemplo, foi motivo da criação de uma seita, a Igreja Maradoniana. Pasmem: ela tem 20 mil crentes na Argentina e templos espalhados por outros países (você pensou Nápoles, onde ele jogou e cheirou muito, e acertou: lá também tem um templo da seita).

Difícil escolher, mas uma história colhida pelas autoras nos afeta bastante, porque fala da falta de uma identidade própria e nacional, doença que nos acomete há séculos. "Estávamos nos jardins do palácio Sans Souci ('sem preocupação', em francês), uma beleza em estilo renascentista francês em San Fernando, na província de Buenos Aires. Uma orquestra de jovens artistas tocava, ao ar livre, tangos em bandoneons e violinos. E os convidados jogavam conversa fora, enquanto os noivos não chegavam. No meio de um desses bate-papos, um senhor elegante olhou impaciente o relógio e resmungou em espanhol, arrastando o 'r' como costumam fazer os franceses:

- Não sei por que insistem em fazer casamento de noite aqui na América Latina. Na Suíça não é assim.
- O senhor é suíço?, indadou o interlocutor.
- Não, mas sei como é lá.
- O senhor já morou na Suíça?
- Não, mas sei como é.
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