Cultura & Lazer Titulo
Cannes contraria os prognósticos
Por Cássio Gomes Neves
Do Diário do Grande ABC
23/05/2004 | 19:07
Compartilhar notícia


As notícias que chegavam ao Brasil sobre o desempenho de Diários de Motocicleta na 57ªedição do Festival de Cannes construíram a certeza de que pelo menos um premiozinho de vulto o filme de Walter Salles traria da Riviera Francesa. Correspondentes e agências de notícias retratavam a euforia com que público e especialistas receberam o longa-metragem que reproduz a viagem de formação ideológica de Ernesto Guevara pela América do Sul nos anos 50, antes do apelido Che reverberar como sinônimo de sublevação e antes mesmo que a batida foto de autoria de Alberto Korda estampasse com veemência biquínis e camisetas.

Na primeira exibição em Cannes, a platéia aplaudiu Diários de Motocicleta durante cerca de 15 minutos. A imprensa especializada acreditava que o filme ocupava a pole-position na disputa pela Palma de Ouro; caso não obtivesse a láurea máxima, era certo que Waltinho seria lembrado para o prêmio de diretor; se, ainda assim, a direção não convencesse o júri, Gael García Bernal teria sua interpretação de jovem Che laureada. Contrariando quase todos os prognósticos, o filme do cineasta brasileiro não obteve nada, niente, entre as principais categorias do júri oficial, embora tenha sido o campeão das premiações paralelas, com três delas: a Hóstia de Ouro, concedida pelo júri ecumênico; o prêmio François Chalais, iniciativa do Ministério da Cultura da França; e o Prêmio Cidade de Roma, do Instituto Internacional para Cinema de Países Latinos. O diretor de fotografia de Diários de Motocicleta, Eric Gaultier, recebeu o prêmio técnico Vulcain tanto pelo filme de Salles quanto pelo trabalho em Clean, de Olivier Assayas.

“Não foi uma surpresa, no sentido de que não há nenhuma interseção entre o cinema que fazemos hoje na América Latina e aquele que Tarantino representa”, afirmou Salles em nota oficial divulgada no domingo. O cineasta revela aí dois fatos importantes que determinaram a exclusão de sua obra do quadro de recompensados em Cannes. Primeiro, o fato de o festival praticamente ignorar em premiações o emergente cinema latino-americano ao não reconhecer as novas manifestações brasileiras, argentinas e mexicanas, para ficar só nas mais patentes. Existem nessas cinematografias, é evidente, leituras novas (talvez renovadas) de problemas sociais ancestrais, com mais humor e menos proselitismo.

Em seguida, aparece o fato de que Farenheit 9/11, o filme de Michael Moore ganhador da Palma de Ouro, calha de aparecer para o mundo em um momento no qual o tratamento desumano de prisioneiros de guerra iraquianos por parte de militares norte-americanos gera questionamentos: seriam aqueles atos uma metodologia ou falta de decoro de algumas instâncias da hierarquia militar? Moore, popularizante do documentário espalhafatoso e egocentrista, parece afirmar no longa seguinte a Tiros em Columbine que o buraco é mais embaixo – ou mais em cima, já que aponta o presidente George W. Bush como um depósito de mentiras e de negligências políticas.

Surpreendeu-se quem achava que Quentin Tarantino, o presidente do júri de Cannes, fosse avaliar e premiar o cinema apenas enquanto fenômeno artístico, e não por possíveis qualidades políticas. Tarantino, em uma determinada cena de Kill Bill – Volume 1 (em cartaz no circuito), acenava para a urgência do imperialismo norte-americano: a personagem de Lucy Liu, uma mestiça de ascendências chinesa, japonesa e ianque, toma posse de uma facção mafiosa nipônica e, ao marcar terreno, faz questão de discursar em inglês, mesmo que seus ouvintes, todos japoneses, não a entendam. Tarantino e Moore, unidos artisticamente contra os atos do candidato do partido Republicano às eleições presidenciais nos Estados Unidos neste ano. Em linhas gerais, foi esse o recado moral do 57º Festival de Cannes para o mundo.




Comentários

Atenção! Os comentários do site são via Facebook. Lembre-se de que o comentário é de inteira responsabilidade do autor e não expressa a opinião do jornal. Comentários que violem a lei, a moral e os bons costumes ou violem direitos de terceiros poderão ser denunciados pelos usuários e sua conta poderá ser banida.


;