Cultura & Lazer Titulo Polêmica
Arte silenciada

Especialistas da região acreditam que cancelamento de mostra e apreensão de obra são retrocessos

Vinícius Castelli
17/09/2017 | 07:00
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 O escritor francês Gustave Flaubert (1821-1880), após lançar o clássico Madame Bovary, em 1857, enfrentou sérios problemas. A obra, com a história de mulher que comete adultério, promoveu à época críticas à burguesia europeia, o que desagradou, e muito, porção de gente poderosa. O autor, acusado de ofender a moral e a religião, foi levado a julgamento, e absolvido.

Há uma semana, a exposição em Porto Alegre Queermuseu – Cartografias da Diferença na Arte Brasileira, que tinha como objetivo falar da diversidade sexual e das questões de gênero, foi encerrada antes do prazo – era para ficar até 8 de outubro. O Santander Cultural, responsável pela iniciativa, sofreu pressão de grupos que alegaram que parte do acervo promove pedofilia, sexualização de crianças e zoofilia.

Em nota ao Diário, a mesma enviada aos seus clientes, a instituição financeira pediu desculpas a àqueles “que enxergaram o desrespeito a símbolos e crenças na exposição. Isso não faz parte de nossa visão de mundo, nem dos valores que pregamos”. A mostra, a princípio, foi viabilizada com incentivos da Lei Rouanet (R$ 800 mil), benefício fiscal que o organizador afirmou que não usará, já que foi dissolvida antes do previsto.

A Queermuseu foi ilustrada por cerca de 270 obras de 85 artistas. Nela estavam, entre outras, Travesti de Lambada e Deusa das Águas, de Bia Leite, e Cruzando Jesus Cristo Com o Deus Shiva, de Fernando Baril. O promotor Julio Almeida visitou a exposição no começo da semana e afirmou não ver nas obras pedofilia. Tudo começou após vídeo amador feito no espaço cair nas redes sociais. Entre os que encabeçaram o fechamento está o MBL (Movimento Brasil Livre), que foi procurado pela equipe de reportagem e não deu retorno até o fechamento desta edição. A ação contou, inclusive, com apoio do prefeito da cidade, Nelson Marchezan Jr. (PSDB). Kim Kataguiri, um dos líderes do movimento, se posicionou oficialmente: “Isso é um boicote que deu certo, não uma censura.” Durante protesto em Porto Alegre integrantes do MBL que cobriam o evento chegaram a ser agredidos.

QUESTÃO DE OPINIÃO
Talvez se Édouard Manet (1832-1883) vivesse no Brasil hoje também não ficasse imune ao exibir a peça Dejeuner Sur l’Herbe, com pintura de corpos nus. Assim como não passou batida a peça Pedofilia da artista mineira Alessandra Cunha, conhecida como Ropre. Na quinta-feira, após o episódio de Porto Alegre, ela teve um de seus trabalhos, disponível no Museu de Arte Contemporânea do Mato Grosso do Sul, apreendido pela polícia por ser considerado apologia à pedofilia. O fato ocorreu após três deputados estaduais registrarem boletim de ocorrência. O fato chocou a artista. Ela se manifestou dizendo que sua obra foi pensada para servir de alerta justamente contra o abuso.

Fato é que para muita gente arte pode ofender. Para outros, ela existe mesmo é para questionar. “É feita para promover reflexão”, opina Thomaz Pacheco, museólogo e galerista da OMA Galeria, de São Bernardo. “Se tivéssemos uma exposição como a Queermuseu a cada esquina não teria gente quebrando lâmpada na cabeça de ninguém na Avenida Paulista”, afirma Pacheco, se referindo ao episódio em que jovem que estava com dois amigos homossexuais foi agredido em 2010.

Doutor em Comunicação e professor da Universidade Metodista, Herom Vargas também lamenta o fechamento. “Lutou-se tanto para acabar com a censura e, de repente, por conta de um conservadorismo ignorante, a sociedade sucumbe a ela novamente. Uma moral e tipo de gosto ou modelo estético não podem se colocar como padrão único na sociedade. Se fosse assim, por que não censuram a programação de TV, bem pior do que as obras nessa exposição?”, questiona.

Nilo Almeida, museólogo e encarregado da Casa do Olhar Luiz Sacilotto, em Santo André, diz que proibir nunca é opção. Algo que o preocupa é que esse tipo de decisão (de fechar a mostra) pode fazer com que as pessoas tenham menos acesso à informação. Segundo a Unesco (Organização das Nações unidas), a maior parte dos livros, por exemplo, está concentrada nas mãos de pouca gente. “Quase todos os brasileiros nunca frequentaram museus ou jamais frequentaram alguma exposição de arte”, relata o site do órgão.

Para Almeida, esse acontecimento estreita as possibilidades de acesso ao conhecimento. “Temos de respeitar os caminhos e escolhas. Nos centros de Cultura você pode celebrar a diversidade de opinião”. Ele acredita que as pessoas têm o direito de ver (as obras) e se chocar, para depois dialogar. “A partir daí crescemos e o processo é enriquecedor.”

Pacheco acredita ser pura hipocrisia achar que “empurrar a exposição para debaixo do tapete resolverá algum problema”. Ele sublinha ainda que a arte é o retrato da vida. “Reconheceram uma pessoa penetrando um animal – como há em uma das peças que estavam expostas – porque aquilo existe. Não é surreal, invenção, é reflexo da sociedade.”

O professor Herom Vargas explica que a arte tem muitas funções na Cultura, desde entretenimento, como dançar no fim de semana, até promover embates entre posições éticas e morais. Para ele, se ela sucumbe às limitações, perde seu motivo de existir ou se mantém dentro da mera diversão. “Arte pode ser polêmica e nos fazer perceber as coisas de outros ângulos, nos posiciona de maneira diversa.”

O acadêmico também defende que a arte tem a capacidade de ser exercício de harmonia e equilíbrio, de ser mera contemplação ou intranquilizar e desequilibrar nosso pensamento em relação às certezas que achamos que temos. “Se não fossem as polêmicas, faríamos arte sempre da mesma maneira. Felizmente, as sociedades mudam, os comportamentos e as ideias se transformam. Por que temos de manter os padrões estéticos de antes? A arte pode e deve falar de temas contemporâneos. Essa em Porto Alegre se tratava disso”, finaliza.




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