Cultura & Lazer Titulo
Lentilhas da sorte
Por Sílvio Lancellotti
30/12/2006 | 17:13
Compartilhar notícia


No apogeu da Grécia Clássica, cerca de 2,5 mil anos atrás, se dizia do homem que enriquecia: “Esse não precisa mais comer lentilhas”. Hoje, ironia descomunal, virou tradição, mesmo nas festas de Réveillon dos abastados, comer lentilhas para ter sorte e somar dinheiro. Da família das leguminosas, na botânica denominadas de Lens culinaris ou de Lens esculenta, as lentilhas ganharam fama de alimento trivial pela facilidade com que se cozinham. De todo modo, também se tornaram símbolos da promessa de fortuna por causa da facilidade com que se plantam e se multiplicam. Plantam-se, aliás, desde que o homem deixou de ser nômade, em busca de caça, virou sedentário e começou a cultivar vegetais. Arqueólogos já descobriram áreas de semeadura de lentilhas em Qalat Jarmo, nordeste do Iraque, datadas de 6.750 a.C.

No Livro do Gênesis, o primeiro da Bíblia, os seus grãos protagonizam um episódio emblemático. Filhos do patriarca Isaac e de Rebeca, Esaú e Jacob eram gêmeos. Cabia, porém, a Esaú, o direito de se considerar o primogênito – e, por extensão, o de herdeiro principal. Certa tarde, ao voltar do campo, exaurido, depois de uma longa jornada de trabalho, Esaú deparou com o irmão que preparava um caldeirão de guisado de cabrito e lentilhas. Faminto, tentado por Jacob, aceitou lhe ceder o seu direito em troca de um prato do guisado. Depois, ao se perceber traído, Esaú se transferiu a plagas distantes – e ficou poderoso. Bênção de Deus ou porque as lentilhas de Jacó lhe deram sorte? O episódio, exemplo da pequenez que pode levar a uma desavença irrecuperável, inspirou Machado de Assis a escrever um romance memorável, Esaú e Jacó, sobre as diferenças irreconciliáveis entre dois manos, Paulo e Pedro.

As lentilhas brotam, duas a duas, dentro de envoltórios parecidos com os das ervilhas, nos galhos delgados de uma singela trepadeira que não chega ao meio metro de altura. Com um teor generosíssimo de 25% de proteínas, só perdem, em tal departamento, para os grãos de soja. Ultratolerantes às secas, se adaptam perfeitamente, até, aos solos mais áridos. A Índia colhe metade da sua produção – mas, a utiliza basicamente no consumo interno. Por incrível que pareça, é o Canadá o seu maior exportador, cerca de 400 mil toneladas. Cá no Brasil, se adequaram admiravelmente às terras dos Cerrados.

Embora todos os tipos provenham da mesma família, existem lentilhas de várias cores, do dourado ao alaranjado, do verde ao castanho e ao quase preto. Os especialistas afirmam que as francesas, escuras, de Puy, são as melhores do planeta, tanto que lhe dedicaram uma confraria. Na cidade de São Paulo, podem-se comprar as preciosas lentilhas de Puy na importadora Casa Santa Luzia (alameda Lorena, 1.471, Jardim Paulista, tel. 3897-5000).

Cada região do globo ostenta a sua maneira de fazer lentilhas. Na Índia, substituem a carne sagrada do boi. No Oriente Médio em geral, se combinam ao arroz e às fatias de cebola bem tostadinha. Na Espanha e na Itália escoltam a carne do porco. A seguir, eu proponho duas alquimias que desenvolvi a partir de duas receitas de raiz oriental. Até as minhas crianças adoram.

Curiosidades

CAUTELAS NO COZIMENTO

O cozimento das lentilhas não exige proezas técnicas e nem talento. De todo modo, a sua preparação básica pede algumas cautelas. Principalmente quando se fazem as lentilhas ainda com as suas peles. Etapa inicial, e crucial: colocar as lentilhas numa terrina e cobri-las, por doze horas, com água gelada. Depois, basta trocar o líquido e levá-las ao fogo brando, com os temperos de plantão, sal, pimenta-do-reino, uma folha de louro, a partir da água ainda fria. Os grãos chegam ao ponto correto quando o líquido começa a borbulhar. Por favor, apenas ultrapasse esse ponto caso deseje transformar, posteriormente, as suas lentilhas em um purê. Experimente, então, espessar o purê com um tico de farinha, produzir bolinhos esféricos – e, daí, fritá-los em óleo de milho.

OBRIGATÓRIAS NAS DIETAS

Além do seu teor fundamental de proteínas, as lentilhas possuem uma enorme quantidade de fibras essenciais à digestão, mais um farto volume de sais minerais e de Tiamina, a vitamina B1. Sem dizer que ostentam uma proporção insignificante de gorduras, menos de 0,6%, e são anti-oxidantes, circustância que levou os nutricionistas a fazê-las quase obrigatórias nas dietas contemporâneas. O helênico Hipócrates (460 a.C.- 377 a.C.), o chamado “Pai da Medicina”, prescrevia a sua sopa aos pacientes com males do fígado. Plínio (23-79), o historiador romano, também recomendava a sua sopa como um calmante, em particular aos amigos de caráter mais destemperado. Consta que servia um banquete com lentilhas quando morreu numa erupção do Vesúvio.

Receitas

LENTILHAS DO SL

Ingredientes, para uma pessoa: 100g de lentilhas já cozidas, bem al dente; 2 colheres, de sopa, de polpa peneirada de tomates; 3 colheres, de sopa, de suco de laranjas, bem coado; sal; 1 colher, de café, cheia, de cominho em pó; 1/2 cebola branca, média, sem a casca, raladinha; 2 colheres, de sopa, bem cheia, de pepino raladinho, com a casca; o sumo, filtrado, de um limão; 1 colher, de sopa, rasa, de hortelã bem picadinha; azeite de olivas, virgem.

Modo de fazer: Num fundo de azeite virgem, reaquecer as lentilhas na companhia da polpa de tomates e do suco de laranjas. Acertar o ponto do sal e tempero com o cominho. Paralelamente, combinar a cebola, o pepino, o sumo de limão e a hortelã. Montar num prato bem bonito, como na fotografia. Ao servir, banhar o conjunto com um fio supergeneroso de mais azeite virgem.

SOPA DOS PACHECO DE ITU

Ingredientes, para uma pessoa: 1 colher, de sopa, de azeite de olivas, normal; 1 colher, de sopa, média, de manteiga sem sal; 1 colher, de sopa, média, de bacon, cortado em minidadinhos; 1 dente de alho, trituradinho; 3 colheres, de sopa, de vinho tinto, seco; 50g de lentilhas, transformadas em purê; 1/2 copo, do tipo americano, de caldo de carne; 50g de lentilhas, cozidas, bem al dente; sal; pimenta-do-reino; 1 ramo de hortelã; azeite de olivas.

Modo de fazer: Numa caçarola de tamanho adequado, aquecer o azeite e derreter a manteiga. No conjunto, dourar o bacon e, daí, murchar o alho. Despejar o vinho, dissolver as gorduras eventuais. Agregar o purê de lentilhas e o caldo de carne. Misturar e remisturar, muito bem. Incorporar as lentilhas inteiras. Reaquecer. Ajustar o ponto do sal e da pimenta-do-reino. No prato que for à mesa, enfeitar com a hortelã e banhar com um bom fio de azeite.




Comentários

Atenção! Os comentários do site são via Facebook. Lembre-se de que o comentário é de inteira responsabilidade do autor e não expressa a opinião do jornal. Comentários que violem a lei, a moral e os bons costumes ou violem direitos de terceiros poderão ser denunciados pelos usuários e sua conta poderá ser banida.


;