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Ailton Krenak: ‘Nós estamos sendo assassinados e vou ligar para fantasia?’

Líder indígena e escritor fala sobre como as questões de seu povos estão sento tratadas

Por Miriam Gimenes
Do Diário do Grande ABC
02/03/2020 | 07:00
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Na margem esquerda do Rio Doce, em Minas Gerais, entre as cidades de Resplendor e Conselheiro Pena, está a tribo Krenak. Um de seus ‘filhos’ é Ailton Alves Lacerda Krenak, líder indígena e escritor, que desde que se entende por gente luta pelos direitos de seu povo, o que o levou a ser reconhecido internacionalmente. Pelos seus, participou da Assembleia Constituinte, em 1987, da Fundação da União dos Povos Indígenas, no ano seguinte, defendeu a Amazônia ao lado de Chico Mendes e clama, hoje, para que tudo o que conquistaram – inclusive suas terras – não seja perdido.

Quem é Ailton Krenak?
Sou uma pessoa que vive na região do Rio Doce, do povo Krenak. Sou jornalista, escritor, tenho 66 anos e tenho me dedicado a cuidar da família. Estamos interditados na nossa reserva, à beira de um rio que está doente, desde que a lama da mineração ocupou toda sua bacia, transformando ele em um canal de lama. Há quatro anos estamos sendo abastecidos por caminhão-pipa e vivendo uma situação de flagelados dentro de nossa área e essa situação que estamos vivendo no Rio Doce tem se repetido em outras regiões do País. Há hoje uma sequência muito grande de crime ambiental que inclui destruir a paisagem, acabar com a qualidade do ar, da vida que as pessoas têm.

Você teve atuação importante na Assembleia Nacional Constituinte, em 1987. Chegou a fazer um discurso emocionante à época. De que maneira essa ação repercutiu? Os avanços aprovados refletem ainda hoje?
Na Constituinte de 1988 eles criaram nova condição para os povos indígenas, que até aquela época estavam em um processo de quase desaparecimento das suas formas próprias de vida. Havia um processo de integração (de posse) muito violento e os direitos indígenas, com aquela intervenção (Constituição), asseguraram que pelas décadas seguintes pudéssemos contar com o estado de direito, que começa com a demarcação dos povos indígenas. O Estado, por meio das agências do governo, começou a ter obrigação de fiscalizar e proteger esses territórios. Mas de dez anos para cá a disputa sobre esses direitos da Constituinte transformaram aqueles direitos publicamente reconhecidos em demandas jurídicas. Estamos na fase da judicialização dos direitos indígenas. Esse termo extremamente técnico se traduz em diversas ações de particulares e também de outras agências dos governos, Estados, municípios, podendo interferir nos processos de identificação dos territórios e eventualmente até barrar a demarcação no STF (Supremo Tribunal Federal). Tudo isso relativiza o que está estabelecido como princípio na Constituição, que os juristas chamam de cláusula pétrea. Hoje qualquer sujeito pode entrar com ação questionando a existência de um território indígena. E é importante esclarecer que as terras são um patrimônio da União, não são de propriedade indígena e estão sendo invadidas de maneira acintosa.

De que maneira iniciou sua atuação enquanto escritor?
Foi minha primeira profissão, digamos assim. No fim da década de 1970, quando vim com minha família para São Paulo, comecei fazendo o Jornal Indígena, um tabloide com textos de diversas lideranças indígenas. Cinco anos depois o jornal virou um programa na Rádio USP, com o nome Programa de Índio, no mesmo formato. Cheguei também a trabalhar na Editora Abril e foi aí que o escritor começou. Meus primeiros artigos publicados foram coletâneas de cultura, história e sobre direitos indígenas. Depois veio o primeiro livro de minha autoria, chamado O Lugar Onde a Terra Descansa e, o último, Ideias para Adiar o Fim do Mundo (Companhia das Letras).

Como o senhor vê a relação do homem com a natureza?
Nenhum de nós mora longe da natureza. Ela atravessa nossa respiração, organismo, fisiologia. Você come, bebe e caga a natureza, senão estava morta. Aprendi que não tem separação entre a ideia de viver e natureza. Tanto que sempre tive dificuldade, apesar de acharem que sou ambientalista, em me definir assim. Ambientalista é alguém que acredita que existe meio ambiente. Não acredito que a gente possa estar fora da natureza fazendo algo pela natureza.

Como vê a proposta do governo Bolsonaro de permitir a mineração em terras indígenas, ideia rejeitada na Câmara dos Deputados?
Ainda bem que ainda não virou uma norma, mas isso não muda muito a realidade. A pronúncia das autoridades incitando garimpeiros, madeireiras e todo tipo de intrusão nas terras indígenas tem um efeito prático, que já está sendo visto. A invasão da terra indígena também é feita com o desmantelamento do Ministério do Meio Ambiente, do sistema de vigilância ambiental, do Ibama, das secretarias ambientais de cada Estado. Todas essas agências estão sendo desestimuladas a executar esse serviço. Se nós temos um governo no ambiente federal e estaduais com uma atitude predatória e agressiva com relação aos rios, florestas, a paisagem toda, a gente não vai achar que vamos mudar isso de uma hora para outra. Assistimos a um escândalo internacional com a história do dia do fogo (na Amazônia). Isso não tem a ver com a mineração, isso tem a ver com que a floresta possa ser devastada e o agronegócio seria um destino natural. Isso é uma ofensa, inclusive ao Chico Mendes (ambientalista assassinado em 1988), uma pessoa que conheci e fico impressionado com a falta de memória desse povo, que não sabe nem quem foi ele. Enquanto esse governo tiver mandato ele vai tentar roubar a floresta e os povos indígenas.

Quando o senhor voltou para o Rio Doce?
Voltei para cá em 1997, exatamente porque estávamos em luta contra essa pressão de uso do rio, de construção de hidroelétricas. A última barragem foi inaugurada em 2003 pelo Lula. Destruir nosso rio não é privilégio do Bolsonaro. Tivemos de continuar a luta contra a construção de Belo Monte, no Xingu. Parece que tem uma cultura dessa mentalidade capitalista que separa a natureza do homem e acha que ela é uma coisa que os homens podem modelar. A natureza não é uma matéria plástica.

E o que acha da nomeação do pastor Ricardo Lopes Dias para coordenação-geral de índios isolados da Funai?
Vejo como um resíduo de toda essa violência do Estado contra a sociedade, inclusive porque a Funai (Fundação Nacional do Índio) é uma agência falida há muito tempo. O Mário Juruna, que foi deputado na década de 1980, chamava a Funai de ‘Funerária Nacional do Índio’, então está muito bem para um pastor liderar isso. Ela mais enterrava os índios do que ajudava.

De que maneira os índios estão se organizando para defender a sua cultura, suas terras e suas vidas?
Quando comecei a minha atividade, meu ativismo foi criando a União das Nações Indígenas, depois a Aliança dos Povos da Floresta, com Chico Mendes. Sempre acreditei na união não só do povo indígena, mas também da aliança com ribeirinhos, caiçaras, com o pessoal da borda da natureza, que precisa de água saudável e não água de esgoto, como está acontecendo no rio. Não acredito em outra coisa. O povo indígena tem visão comum sobre seus direitos. Quando defendi na Constituinte, não era uma tese pessoal minha. Englobava muito mais povos, tinha a Associação da Imprensa, a OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), antropólogos, sindicatos. Não estava pleiteando algo sozinho, era nacional.

Como o senhor vê essa questão da apropriação cultural, tão falada durante o Carnaval?
Acho que não ofende ninguém. Se todo problema que tivéssemos fosse as pessoas de Carnaval se vestirem de índio podíamos soltar fogos. Nós estamos sendo assassinados e vou ligar para quem está fantasiado de índio? Tem inclusive o bloco Cacique de Ramos (no Rio), que é histórico e tem total liberdade para se fantasiar de índio quando quiser. É uma besteira ficarmos discutindo isso. Era bom discutir isso na Suíça, onde não tem problemas.

Há pouco tivemos o Oscar e a índia Sônia Guajajara participou de protesto no tapete vermelho levantando a bandeira da questão indígena. Acha que gestos como esse chamam atenção para o que vivenciamos hoje no Brasil?
Não existe mais a ideia das fronteiras. O que acontece aqui acontece em qualquer lugar do mundo. Acho que uma palavra em defesa desses povos da Floresta Amazônica no Oscar tem a mesma importância de refletir sobre uma realidade global. Duvido que tenha alguém pensando a vida nos termos de uma fronteira. O mundo está todo conflagrado. Não tem ninguém que pode dizer que não tem nada a ver com isso. Se você queima, se usa combustível fóssil, se está usando materiais que vão desequilibrar ecossistemas que você vive, tem reflexo para todo mundo.

Quais os desafios das lideranças indígenas hoje?
O preconceito piorou muito. Tem uma campanha pública de difamação feita pelo presidente da República contra o nosso povo. Se já sofríamos todo tipo de sacanagem, agora viramos alvo fácil.

Como vê a situação política do País?
Triste. É uma situação vergonhosa, que está sendo condenada por instituições desde o Vaticano até as comunidades organizadas em outros lugares do mundo, abismadas com a situação de um País do tamanho do Brasil flutuando como se fosse um boi voador. Nunca viram boi voando, estão admirados.

Qual seu maior sonho?
Eu não tenho um sonho maior. Sou uma pessoa com pé no chão. A minha expectativa é que a gente consiga sair desse pesadelo, porque estamos em um pesadelo social coletivo, salvo um ou outro cara alienado que elegeu esse sujeito, a maioria das pessoas está com vergonha. Nós estamos andando para trás, literalmente.

Quais são as ‘ideias para adiar o fim do mundo’?
É ser capaz de olhar a realidade ao nosso redor e dizer coisa com coisa. Não é uma ideia ambiciosa. Os budistas dizem que a gente tem de ter a consciência de cada momento que estamos vivendo, o ‘aqui e o agora’. Adiar o fim do mundo não é um projeto futuro, é dar conta de cada dia. Não é uma fantasia de Carnaval que vai adiar, são as escolhas cotidianas. A gente costumava chamar isso de cidadania, mas está tão banalizado que eu nem sei se as pessoas sabem o que é isso.

RAIO X
Nome: Ailton Alves Lacerda Krenak
Estado civil: Casado
Idade: 66 anos
Local de nascimento: Itabirinha, Minas Gerais
Formação: Jornalista
Livros que está lendo: Direitos da Natureza (Eduardo Gudynas), Terra Inabitável (David Wallace) e Meio Ambiente: E eu Com Isso? (Nurit Bensusan)
Projeto: Livro sobre o Rio Doce, ainda sem data de publicação




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