Cultura & Lazer Titulo Literatura
Médico e fotógrafo revelam um Brasil profundo
Por Alessandro Soares
Do Diário do Grande ABC
16/12/2008 | 07:00
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Um Brasil profundo, longe dos olhos, das lentes e das antenas, emerge das águas escuras e espelhadas do Rio Negro, aquele que se junta, sem se misturar, com o Rio Solimões para formar o Amazonas. O rio é a via de acesso à região do mapa do Brasil, protegida por serras escarpadas, rios caudalosos e com corredeiras e cachoeiras, cujo contorno tem a forma de uma cabeça e dorso de um cão. Fica no Noroeste do Estado do Amazonas, na fronteira com Venezuela e Colômbia. Lá o fotógrafo Araquém Alcântara e o médico cancerologista Drauzio Varella documentaram povos indígenas, fauna, flora e uma paisagem miraculosamente intocada, com 360º de verde à vista, um rincão amazônico onde preservação da cultura e do meio ambiente funciona.

O resultado da expedição desses bandeirantes às avessas é o livro bilíngüe Cabeça do Cachorro (Terra Brasil, 220 págs., R$ 145), com mais de 140 com fotos de Alcântara e ilustrações de viajantes e naturalistas que lá estiveram entre o século 18 e início do 20.

Na crônica de viagem que resulta destas páginas, a narrativa imagética das fotos dialoga com o texto do doutor Varella, em português e inglês, que faz um apanhado histórico da bacia do Rio Negro, com apenas um deslize, de 256 anos: na página 27, o autor deixou passar um Tratado de Tordesilhas (1494, que dividiu o globo entre Portugal e Espanha, potências ultramarinas) quando se referia a fato posterior ao Tratado de Madrid (1750, que definiu as fronteiras do Brasil à época, semelhantes às atuais).

Alcântara e Varella reportam, como os cronistas-viajantes faziam no século 16, com texto e imagens, o testemunho de um mundo natural ainda não perdido pela ocupação ilegal e devastadora de terras. Os indígenas e seus descendentes que sobreviveram à ação civilizatória e predadora do passado conseguiram a demarcação de terras em 1998, que não compensa as perdas humanas e a violência. Lutam agora por um desenvolvimento sustentável, para não viverem como seus avós, mas integrados ao mundo sem destruir a floresta.

A presença portuguesa na região, que escravizava índios para lavouras, empurrou populações rio acima; no início do século 20, veio o ciclo da borracha e mais exploração. Ao contrário dos bandeirantes, que caçavam índios para escravizá-los, fotógrafo e médico-autor registraram índios e seus descendentes, seu modo de vida, a floresta e os animais, costumes e desafios da região, onde a miséria ainda é visível e o custo de vida altíssimo. A constatação da obra: pais e mães amazônicos da Cabeça do Cachorro sonham para si um pouco de conforto, energia elétrica em casa e computador; para os filhos, escola. Sonhos simples, mas ainda distantes.

Como crônica de viagem, o texto inclui algumas histórias individuais e homogeniza grupos para apresentar uma realidade. Mas há várias realidades embrenhadas na mata, vilas e povoados. A narrativa visual, bela e poética, dialoga com o texto, tanto pelo que tem de sintonia documental como pelo que o conjunto da obra poderia ter sido: um mergulho profundo, que ficou na superfície. Mesmo assim, um registro importante de uma realidade e uma paisagem tão distantes, mas tão brasileiras.

 

Natureza é foco há 40 anos

O livro Cabeça do Cachorro junto com Bichos do Brasil e Mata Atlântica, todos de Araquém Alcântara e da editora Terra Brasil, formam uma tríade sobre a biodiversidade brasileira. O primeiro será lançado nesta terça-feira, às 19h, no Museu da Casa Brasileira (tel.: 3032-3727), em São Paulo. É o início das comemorações dos 40 anos de carreira do fotógrafo especializado em natureza. "Sou um intérprete do Brasil, que lança uma luz sobre determinadas geografias", disse Alcântara.

Cabeça do Cachorro nasceu em um jantar regado a cachaça. "Eu e Drauzio gostamos muito. Outra paixão é a Amazônia e a bacia do Rio Negro. Drauzio já a conhecia (ele dirige projeto de pesquisas farmacológicas de plantas da região, parceria da Unip com o Hospital Sírio-Libanês). Eu fui ao Pico da Neblina em 1997, minha primeira viagem (na base do pescoço do cachorro). Depois viajamos 12 dias com apoio da FAB - se fosse só por barco levaria uns três meses. Fiz outra longa viagem para lá. Juntamos nossa documentação e saiu a obra."

A selva amazônica é sua matriz criativa, mas também a Mata Atlântica, o Cerrado, a Caatinga. "Paisagem, fauna, flora e gente. Procuro revelar o Brasil aos brasileiros, que não têm consciência plena de que a mortandade das florestas é um atestado da nossa incapacidade de transpor o abismo da nossa ignorância planetária."

Aos 57 anos, sua linguagem reflete uma revolta da condição socioambiental. "Tive consciência do que era sustentabilidade em 1978, durante uma reportagem em Cubatão, quando choveu uma chuva ácida sobre a gente. Falei que esta água que poderia celebrar a vida significava a morte. Essa revolta ainda me acompanha. Minha fotografia celebra a vida."

Natural de Itajaí (SC), cresceu em Santos desde os 6 anos. Em 1969, queria ser escritor, mas decidiu pela fotografia. Fez os primeiros ensaios em Santos, clicou crianças sem cérebro vítimas da poluição de Cubatão; deu as costas ao Litoral e ficou de frente para o Interior. "Tornei-me fotógrafo andarilho, sistematizando ecossistemas e a fotografia de natureza. Assim, fui dando forma a minha arte." A consagração veio com Terra Brasil (DBA, 1998; Melhoramentos, 2001), livro de fotografia mais vendido do País (80 mil exemplares) e prêmios nacionais e internacionais.




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