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Carta à mãe
Ângela Corrêa
Do Diário do Grande ABC
23/12/2010 | 07:00
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Se o escritor tcheco Franz Kafka (1883 -1924) desabafou a frieza paterna em 'Carta ao Pai', livro publicado em 1919, o desenhista David Small tem em 'Cicatrizes' (Leya Cult, 336 páginas, R$ 39,90) a oportunidade de acertar as contas (mesmo que postumamente) com a mãe, descrita como "uma tirana mesquinha e irritadiça".

A graphic novel autobiográfica do escritor norte-americano revê, de maneira bastante dolorosa, episódios traumáticos de sua infância e adolescência, vivida entre a casa da família, em Detroit, e férias de verão assustadoras na casa da avó, em um Estado sulista.

Small, hoje com 65 anos, centrou a narrativa entre os 6 e os 16. Em um contraponto raro de sensibilidade e ironia, mostra como foi ser criado em um ambiente nutrido pela combinação perigosa de mãe ríspida, que batia as portas dos armários para expressar sua raiva, e pai ausente, que, por sua vez, se comunicava esmurrando sacos de boxe.

Os filhos também ‘falavam' como podiam. Enquanto Ted, o mais velho, ‘espancava' instrumentos de percussão, David ficava doente. E foi justamente a tentativa de curar suas crises de sinusite que resultou em um câncer de garganta que o deixou praticamente mudo aos 14 anos. O pai, médico, administrou durante a sua infância sessões e mais sessões de radioterapia - o tratamento indicado na época para males respiratórios.

O diagnóstico de um pequeno cisto na garganta veio três anos antes. Mas, como o desenhista descreve, seus pais estavam mais preocupados em fazer compras do que levar-lhe a um especialista. A distância dos Small em relação ao caçula era tamanha que o nódulo cresceu sem que fosse notado. Foi necessário que uma amiga da família avisasse de que algo estava errado com o garoto. Também não lhe contaram sobre a gravidade da doença: descobriu sozinho, por acaso.

A sequência dos quadrinhos - digna de storyboards de cinema - envolve o leitor em uma atmosfera soturna, que dá a dimensão do silêncio enlouquecedor a que foi obrigado a se acostumar. Cada página é na verdade um grito de Small.

O autor não abranda em nenhum momento a violência que sofreu - nesse caso e em diferentes agressões da mãe (ela chegou a queimar alguns de seus livros).

Porém, ao mesmo tempo, não se perde na condição de vítima. A arte, descobriu, podia libertar e curar. Aos 16 anos, o garoto, que já tinha habilidade para os traços, foi morar sozinho e conviveu com artistas marginais. Retomou, por fim, a voz. E, com essa obra ímpar, parece ter exterminado - e perdoado de vez - os seus demônios. Leitura rápida, mas não se engane, difícil de esquecer.




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