Cultura & Lazer Titulo
Biografia destaca mau-caratismo de D. Pedro I
João Marcos Coelho
Especial para o Diário
21/05/2006 | 09:28
Compartilhar notícia


A leitura de D. Pedro I – Um Herói Sem Nenhum Caráter (340 págs., R$ 38) um dos quatro primeiros volumes da coleção Perfis Brasileiros que a Companhia das Letras coloca nas livrarias – os demais são sobre Getúlio Vargas, Castro Alves e Maurício de Nassau –, causa espanto pela impressionante atualidade das peripécias de nosso primeiro imperador, o homem que nos comandou no épico gesto da independência, e que os livrinhos de história pátria tanto elogiam. Pobres de nossos adolescentes e crianças brasileiros. Ou melhor, pobres de nós todos, condenados a erguer altar para personagem tão mau-caráter.

Do livro para os jornais, o rádio e a televisão, não há a menor mudança de grau nem natureza. Um exemplo? O momento em que a Polícia Federal divulgava os suculentos resultados da operação sanguessuga – aquela do superfaturamento das ambulâncias para prefeituras de todo o país via emendas dos deputados ao Orçamento –, foi a verdadeira cereja no magnífico bolo da corrupção que a cada instante aumenta mais e mais, num crescendo aterrador e irreversível. Portanto, a leitura desta biografia extraordinária de dom Pedro I, escrita pela historiadora Isabel Lustosa, não deveria espantar.

Herói apesar do caráter - O diálogo a seguir, extraído da biografia D. Pedro I – Um Herói Sem Nenhum Caráter, se passou entre o imperador e o marquês de Paranaguá no navio ancorado no porto do Rio, na semana de 7 de abril de 1831. Dom Pedro acabara de abdicar da coroa brasileira e deixava o país. O navio ficou uma semana no porto. O digno marquês, de nome Francisco Vilela Barbosa, que muitas vezes fora seu ministro de Estado, foi pedir-lhe socorro. "Dispensou-o", escreve Isabel Lustosa, "dizendo que já trazia muita gente às costas e dele não se podia encarregar. Como Paranaguá dissesse então que, nesse caso, só lhe restava tornar a Portugal, onde tinha direito a uma pequena aposentadoria como professor, dom Pedro reagiu. Eis o educativo e muito atual diálogo entre as duas altas figuras da monarquia brasileira. Dom Pedro inicia a fala:

– Espero que não vá a Portugal antes de minha filha estar estabelecida no trono; proíbo-o.

– Mas, senhor, que quer que eu faça? Não tenho fortuna, só tinha meu subsídio.

– Faça o que quiser, não é da minha conta: por que não roubou como Barbacena? Estaria bem agora".

Nos sete dias em que ficou no porto, o navio inglês Warspite, que acolhera o ex-imperador, foi palco de muitas visitas de "corretores e comerciantes de má fama na corte", que trataram pessoalmente com dom Pedro. Há testemunhos, diz a autora, da "avidez minuciosa" com que ele realizava avaliações, venda de títulos, imóveis e até objetos banais, como arreios de cavalos, mobílias, roupas, quadros e louças. "Cuidava ele mesmo da contabilidade, arrolando tudo em inumeráveis folhas de papel nas quais se alinhavam parcelas e cálculos com o valor de todos os seus bens. Talvez por desconfiança, acompanhou pessoalmente o embarque de sua bagagem e andava pelos corredores do navio abraçado à caixa de um faqueiro de prata que pretendia vender quando chegasse à Europa".

Nessa altura entende-se perfeitamente o subtítulo que Isabel Lustosa colocou em sua obra. Para ela, "com uma personalidade avessa às regras formais, à qual a irreverência e a sensualidade davam um toque especial, dom Pedro bem faz por merecer o qualificativo que Mário de Andrade deu a Macunaíma: Um herói sem nenhum caráter. Mas no caso de dom Pedro, dadas as consqüências históricas de seus atos heróicos, a biografia marcada por lances romanescos, esse 'herói' deve ser sempre associado ao seu nome com H maiúsculo. Quem foi esse homem que começou a governar o Brasil como regente aos 22 anos, fez a nossa independência – porque sem ele talvez ela não tivesse acontecido de forma a garantir a unidade do Brasil –, deu a Constituição que regeria o país por mais de 65 anos, comandou um exército na Europa para retomar a coroa da filha em Portugal, onde não voltava desde os 9 anos, e morreu ali cercado de glória, como um verdadeiro herói? Dom Pedro I é, sem dúvida, o personagem mais fascinante da história do Brasil."

De volta ao navio Warspite e a 1831, dom Pedro escreveu uma carta sem constrangimentos aos representantes da Regência para negociar o pagamento de salários atrasados e a quitação de suas próprias dívidas com a Coroa brasileira. "Eu desejo que o tesouro me pague o que me deve e que espere o pagamento do que lhe devo para quando se venderem as minhas propriedades particulares e a mobília de que estão cheios os palácios, quer nacionais, quer meus, deixando para meus filhos o que for preciso para o seu serviço particular".

Ele deixou para trás sua amante, a marquesa de Santos, mas continuou a maltratar a agora ex-imperatriz dona Amélia, sua segunda mulher: "Lembre-se, querida, de que está sem calças", advertiu, na frente de várias pessoas, quando ela ia subir no navio.

Bandido ou mocinho? "A natureza humana é maniqueísta e classificatória. Quando se trata então de personagens extraordinários, heróis ou santos, esse sistema é ainda mais exigente. Se fulano foi um herói, como é que batia na mulher?", escreve Isabel Lustosa. É nessa brecha, que os biógrafos tendem a esconder fatos que contradigam suas teses. Melhor fazer como a autora, ou seja, incorporar todas as contradições e fatos, tentar entender como um homem tão corrupto e leviano ousou "mandar de volta as naus portuguesas repletas de soldados"; desafiou "as Cortes portuguesas, que tentavam reduzir o Brasil novamente ao estágio de colônia"; e enfrentou, determinado, os portugueses na Bahia. Tudo fundamental para o Brasil independente.

Portanto – e aí está talvez o maior sinal de atualidade desta biografia –, um livro como este pode ajudar a entender melhor a realidade política brasileira de 2006, onde só há heróis sem nenhum caráter.




Comentários

Atenção! Os comentários do site são via Facebook. Lembre-se de que o comentário é de inteira responsabilidade do autor e não expressa a opinião do jornal. Comentários que violem a lei, a moral e os bons costumes ou violem direitos de terceiros poderão ser denunciados pelos usuários e sua conta poderá ser banida.


;