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O menino, a garagem e a natureza
Rodolfo de Souza
10/01/2021 | 07:00
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O menino buscou o refúgio da garagem para escapar da chuva intensa. Assustadora, para ser mais justo. Não tinha qualquer relação com o abrigo aberto em seu caminho, por simples obra do acaso.
Usava tênis, como todos os garotos de sua idade. De mochila nas costas, pedalava a sua bike, companheira inseparável que o trazia de compromisso que lhe tomara parte do dia derradeiro. Certamente não imaginou, ao pular da cama de manhã, que sua vida seria abreviada assim, bestamente, antes do anoitecer. Talvez tenha pedalado feliz pelas ruas, como felizes são os meninos. Lembram até as borboletas do campo.
No caminho de volta para casa, contudo, ele foi surpreendido pelo fenômeno da natureza, provedor da vida que, vez ou outra, é tolhida por meio da fúria incontrolável. Apesar de que, não deve ser imputada à chuva a culpa pelos desastres que cerceiam a existência humana aqui e ali, uma vez que quando ela surgiu neste planeta, não havia gente, tampouco asfalto, bueiros entupidos, lixo pelas ruas, políticos preguiçosos e sonolentos para com as questões que dizem respeito às cidades.
E, indiferente a todos esses problemas, ela despencou forte naquela tarde, levando de roldão tudo o que se colocara em seu caminho. Era a água, em grande volume, enchendo rapidamente a cidade. Ela vinha de todos os lados, correndo pelo calçamento feito rio bravo.
A princípio, o menino achou divertido e até meio heroico de sua parte enfrentar tamanha precipitação. Teria muita aventura para contar, o que encheria de inveja a galera que também sonharia domar bicho tão feio um dia. Falaria do aguaceiro escorrendo-lhe pelo rosto, da roupa encharcada, da força empreendida nos pedais... Era, sem dúvida, um desafio assustador que, uma vez vencido, faria dele um forte dentre os fortes.
Entretanto, o medo falou mais alto e calou fundo em seu coração que, sabiamente, aconselhou-o a buscar abrigo. Lugar que, aliás, se materializou em forma de uma garagem de prédio, aberta para que alguém saísse ou entrasse, não se sabe. Fato é que ela surgiu acesa e convidativa, confortável e aconchegante. E o menino ali entrou para se proteger da tormenta que não dava trégua. A câmera do lugar o viu e pensou até que fosse ficar por mais tempo. A máquina que adora espiar as pessoas e imaginar coisas, agora divagava sobre meninos, automóveis e enxurradas apavorantes. Assustadoras, sobretudo para um objeto feito de lentes e circuitos, que jamais experimentara um banho frio daquelas proporções ou de qualquer outra.
Mas o ímpeto de menino inquieto não permitiu que aguardasse uns minutos, poucos minutos provavelmente. E ele saiu afoito, da mesma forma como entrou na garagem. Decidiu por si mesmo que deveria enfrentar a tormenta, e partiu, subindo a rua.</CW>
E a câmera mais uma vez testemunhou e compartilhou o que vira com milhões de pessoas, cujas lágrimas ficou difícil conter diante da cena do pequeno descendo de novo a rua, desta vez, sem a bicicleta, conduzido só pela enorme enxurrada que rapidamente o levou para debaixo do carro, bem na frente da garagem e do olhar atônito da câmera.
Foi empurrado para ali o menino que não optou pela espera e decidiu partir e enfrentar o fenômeno atmosférico que não distingue garrafas PETs de garotos descuidados. A criança que buscava um endereço, o seu endereço, onde provavelmente alguém o aguardava Aquele ser humano no limiar de sua existência foi levado pela água, para debaixo do veículo, parou ali e ali morreu afogado.
Esta criança não recebeu bala perdida, cuspida pela arma do facínora que atira inadvertidamente para todos os lados. Morreu pela ação da água que não tem para onde correr e se amontoa, enchendo de tristeza as cidades mal planejadas e mal cuidadas.




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