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‘Ilustrar não é chover no molhado’
Por Luiz Felipe Soares
Do Diário do Grande ABC
31/12/2018 | 07:00
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Nario Barbosa/DGABC


Mario Mastrotti tem mais de 40 anos de carreira dentro do universo das ilustrações. Atualmente, o morador de São Caetano divide seu tempo entre lecionar no curso de Publicidade e Propaganda da Universidade Metodista de São Paulo e ações artísticas dentro do chamado live marketing. Sua jornada como desenhista cruzou o caminho do Diário entre as décadas de 1970 e 1980. “Quem busca esta carreira precisa gostar de desenhar e contar histórias. Mesmo que esta história se resuma a uma cena”, explica. Em 30 de janeiro, o Dia do Quadrinho Nacional, irá realizar na região outra edição do Encontro de Cartunistas do ABC e de São Paulo.

Como aconteceu seu primeiro contato com o universo das ilustrações?
Não me lembro exatamente de uma imagem, mas de ambiente na infância, onde havia série de livros infantis com grandes ilustrações, com personagens e cenários e, neste mesmo momento, o contato com os quadrinhos da Disney. As histórias e desenhos de Carl Barks, o homem dos patos, como era conhecido, eram as minhas preferidas. Seus desenhos eram fantásticos e as aventuras eram semelhantes às histórias de Tintim e Asterix. Havia riqueza de detalhes e pesquisa nos cenários.

De que forma percebeu que seu talento poderia ser utilizado para que tivesse carreira profissional?
Eu tinha 16 anos, já publicava há um ano no Diário. Um amigo de colégio me mostrou nota na extinta revista Pop, sobre desenhistas que se reuniam em gibiteria na galeria do Cine Paulistano, em São Paulo. Lá eu conheci muita gente dos quadrinhos. Editores, cartunistas, chargistas e roteiristas. Dentre eles o quadrinista Fernando Moretti, que se transformou em grande amigo e pude apresentá-lo para o Diário, no qual publicou tirinhas do Estevão Piro. Chegamos a publicar uma tira conjunta nos anos 1980 chamada Genioval, no Diário mesmo. Conheci também o Franco de Rosa, Cassiano Roda, Jal, Reinaldo de Oliveira e tantos outros. Ali pude entender este mercado. Publiquei no Jornal de Brasília e na Gazeta de Vitória, dentre outros jornais. Na mesma época, fiz páginas dominicais com o personagem Pluft, de Maria Clara Machado, em parceria com o roteirista Cerito.

Quais as características que um bom artista deve ter?
Quem busca esta carreira precisa gostar de desenhar e contar histórias. Mesmo que esta história se resuma a uma cena. O cartum é isso, a charge também, a ilustração idem. Existe uma narrativa, mesmo que seja parte de grande roteiro, mas está ali, existe fio condutor amarrado com a imagem. Precisa gostar de ler e ser curioso. Se você lê sempre os mesmos assuntos, não vai sair do lugar. Precisa ter repertório diverso, não ideológico, estar acima disso. É bom lembrar que as ideologias são imperfeitas. Todas elas. Porque o ser humano é imperfeito e disputa o poder com outro imperfeito. Aí não tem para ninguém. Todos perdem. Por esta razão é preciso maturidade e fazer a leitura nas entrelinhas.

Como foram suas passagens pela redação do Diário?
De 1975 até 1981 trabalhei no departamento de artes e ali atendia a Redação com ilustrações para matérias de política nacional e internacional. Um exemplo foi o início do governo do general (João) Figueiredo. A ilustração trazia o presidente recebendo abacaxi no início de seu mandato, pois a situação econômica não era das melhores. Essa figura de linguagem é recorrente nas charges, pois todo mundo entende seu significado. É inclusiva e democrática. No período de 1985 até 1987 eu trabalhava como freelancer ilustrando exclusivamente o Diarinho.

O que marcou mais nos projetos que realizou no Diário? O trabalho dentro de uma redação é diferenciado?
Considero que as tiras do Cubinho, que eram tiras-charge, trabalho de redação e não de estúdio, pelo seu conteúdo crítico. Elas se conectavam com acontecimentos da atualidade, mas sempre no campo das ideias e raramente pontuando personalidade ou situação específica. Uma missão que assumi após a saída de seu criador foi a coluna Negativo, com o personagem Ramalhino. Aí sim a crítica era pontual e o personagem era inserido na foto do problema urbano, como, por exemplo, buracão na calçada ou lixo em um córrego. Isso fazia muito sucesso, pois dava voz ao povo e fazia o poder público trabalhar para resolver os problemas. Entendo que um dos papéis do jornalismo é a utilidade pública e a coluna cumpria esta função.

De que forma ilustrações dentro do contexto jornalístico conseguem dialogar com o leitor?
Ilustrar não é chover no molhado, não é repetir o que o jornalista escreveu. Precisa complementar, ajudar a dar entendimento ao assunto e a ganhar a dimensão que o assunto merece. Precisa ter sensibilidade para perceber isso e talento para representar tudo por meio do desenho.

Como surgiu o personagem Cubinho? As tiras ainda estão em produção?
Cubinho surgiu depois que fui ao estúdio do Mauricio de Sousa, no qual eles recebiam a garotada que gostava de desenhar e criavam banco de talentos para futuras contratações. O próprio Mauricio me recebeu e mostrou como era a estrutura dos seus personagens. Fiquei meses treinando. Em dado momento decidi que queria ter meu próprio personagem. Era 1974 e no ano seguinte, em 22 de julho, a tira do Cubinho estreava nas páginas do Diário. Foram seis anos de tiras publicadas e seis meses de outra série minha denominada Os Filhos da Máquina. Essa série abordava a alienação da juventude. O personagem ainda sai regularmente em dois jornais regionais.

Cubinho nasceu no meio do regime militar, em que questões como direitos humanos e livre pensar não poderiam ser discutidas. Você acredita que as ideias pregadas pelo personagem ainda são modernas?
Sim e infelizmente. Quando vejo uma de minhas tiras hoje, sobre estes temas e percebo que elas ainda são atuais, significa que não avançamos como nação naquele quesito. Abordava inicialmente a questão da ecologia, que não era um tema abordado na época, menos ainda em tiras. A censura era outro tema. Hoje continuamos tendo censura, de várias formas. Mais sutil, mas existe. As bolhas do Google também podem ser consideradas forma de censura. Ter a visão global das coisas com isenção fica cada vez mais desafiador em mundo com excesso de informação e sem referências confiáveis perceptíveis.

Como o universo das ilustrações consegue causar impacto na vida das crianças?
A criança é página em branco e sempre será impactada com o que estiver ao seu alcance. Por esta razão a responsabilidade dos pais dobra. Eles são responsáveis por oferecer material de qualidade. É importante conectar a criança com sua humanidade. O mundo do consumo é universo à parte que não possui foco direto e claro sobre a qualidade e a formação do jovem. Os pais são responsáveis em desenvolver consciência anterior para que a criança saiba discernir o que serve do que não serve em sua vida futura. O desenho tem o poder e a responsabilidade de mostrar ideias e sensibilizar e os pais a responsabilidade de colocar nas mãos de seus filhos livros de qualidade. Tem muita coisa boa no mercado, mas também muito material bem ilustrado sem conteúdo.

Como funciona o conceito do ‘desenho ao vivo’ que tem realizado em diversos eventos? O que é o Live Marketing?
Live marketing é tudo que é feito ao vivo e não tem volta. Precisa ter expertise e olhar estratégico. São as ações da área promocional que acontecem em tempo real, como organização de eventos, ativação de marca, promoção de vendas, marketing de incentivo e brindes. O desenho, que chamo de live marketing draw, pertence ao live marketing e não se resume ao que o mercado já conhece que são as caricaturas ao vivo. Os storytellings, as facilitações gráficas, o grafite e o desenhos de conteúdo pessoal também fazem parte deste conceito. Faltava um nome para aglutinar tudo isso e eu consegui apresentar este conceito no 2° Congresso de Live Marketing, promovido pela Ampro, em 2015. Ele conversa diretamente com o marketing de conteúdo que pode ser pessoal, como um brinde, ou grupal, como em imersão ou treinamento.

Que tipo de resultado essas ilustrações podem ter na vida dos participantes?
No plano racional, a clareza e a facilidade de ter a ideia do todo representada e planificada. Isso é surpresa para quem recebe. No plano emocional, a sensação de pertencimento e a valorização de seu repertório pessoal. É o marketing de experiência. O poder está nas mãos dos consumidores e as marcas precisam ir além do bom atendimento. Isso é obrigação. Devem proporcionar a experiência de compra, envolver o cliente mostrando os atributos do produto. Na medida em que o comércio on-line cresce, a necessidade de aproximar clientes e marcas aumenta, pois a vida é física e não virtual.

Qual é o grande desafio para se desenvolver caricatura de qualidade?
Primeiro saber desenhar muito bem e conhecer anatomia. Saber distorcer e controlar essa distorção sem se distanciar do modelo. Se for homenagem é para agradar e se é para agradar precisa ter muita sensibilidade para conseguir fazer isso tudo com velocidade em um evento. A média de tempo de uma caricatura é de três minutos, sem esboço e direto com a caneta. Precisa de muito treino e respeito para atender cada pessoa de forma única e com qualidade.

Você é o responsável pelo Encontro de Cartunistas do ABC e de São Paulo. Qual a importância da reunião dos artistas?
A ideia nasceu para criar espaço de encontro para os cartunistas e artistas de HQ e humor gráfico. Fazemos exposição relâmpago e vendemos publicações independentes. Tem também o lado social. Nos últimos anos, a entrada para a participação no evento é um quilo de alimento não perecível e direcionamos para instituições confiáveis. O 13° encontro será realizado no dia 30 (de janeiro).

Os livros Tiras de Letra são reuniões de tiras de diversos cartunistas. De que forma essa junção de trabalhos chama a atenção do público?
É raro no Brasil termos coletâneas de tiristas nacionais. Consegui editar de forma cooperativa dez livros de tiras. Ainda hoje não existe paralelo editorial. Muita gente conseguiu editar pela primeira vez em livro nestas coletâneas. Para o público é forma de ter contato com 27 autores em única publicação e conhecer a diversidade de artistas e material que temos no Brasil.

Você acredita que os salões de humor atuais ainda conseguem se manter relevantes?
Tudo está mudando muito rápido e os salões não estão fora destas mudanças. Serão relevantes à medida em que tenham importância cultural e social perceptível pela população. E isso esbarra na Educação. Ainda precisamos educar a sociedade para ‘subir a régua’ e darmos o próximo passo. Os salões precisam cumprir este papel e atingir as pessoas com comunicação cativante e terão relevância se conseguirem corresponder as mudanças necessárias.

RAIO X
Nome: Mario Dimov Mastrotti
Estado civil: Casado
Idade: 58 anos
Local de nascimento: São Caetano e mora em São Caetano
Formação: Artes Plásticas, pós-graduado em Educação e cursando pós-graduação em Marketing.
Hobby: Ouvir música
Livro que recomenda: Ler é libertador, por esta razão não recomendo um único livro, mas leitura constante e diversa. Forme seu próprio repertório e tome cuidado com o que te faz apenas olhar para um único ponto de vista e considerar que aquilo é uma verdade absoluta e o resto não serve. Não acredite nisso. Tudo se conecta e tem seu papel e importância. A evolução não dá saltos.
Profissão: Ilustrador e professor
Onde trabalha: Na Universidade Metodista de São Paulo, em São Bernardo, e em seu estúdio com projetos de live marketing draw e marketing digital




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