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Filme põe o palhaço na berlinda
Por Alessandro Soares
Do Diário do Grande ABC
17/03/2005 | 12:13
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Há uma intersecção entre o documentário Super Size Me – A Dieta do Palhaço (Imagem Filmes, DVD e VHS), de Morgan Spurlock, e os contos-de-fadas de lobo mau e bicho-papão. Nestas, monstros imaginários devoravam carne humana enquanto as crianças que ouviam essas histórias eram estufadas com doces, bolos, carnes, embutidos e massas para ficarem fortes e saudáveis para uma vida cheia de atividades ao ar livre. Super Size Me fala de outro tipo de monstros, quase invisíveis mas nada imaginários: colesterol e calorias extras são os bichos-papões que pegam adultos e crianças que enchem geladeira e despensa de guloseimas e trocam atividades ao ar livre pela vida sedentária dentro de casas e apartamentos. Os lobos maus modernos atendem pelos nomes de fast food e delivery, e o McDonald’s ainda atrai crianças com brinquedos, brindes e um palhaço como garoto-propaganda.

Quem narra esse “Era uma vez...” contemporâneo é um cineasta que engordou 11 kg, teve o fígado transformado em “patê” e sobreviveu para contar tudo. O documentário de Spurlock, que concorreu ao Oscar da categoria este ano, chega em vídeo e DVD para locação e venda direta hoje nas lojas e locadoras. Spurlock decidiu que o McDonald’s seria sua vítima e ele o algoz. Passou exatos 30 dias comendo sanduíches, batatas fritas, refrigerantes, milk shakes, sempre atendendo sugestão das solícitas atendentes que diziam “com mais tantos centavos, você leva o tamanho grande”, ou super size.

Com um método nada científico, apenas polêmico, Spurlock inverteu sua equação e tornou-se a vítima. Provou que comer demais engorda, fast food causa dependência e grande aumento de peso em curto espaço de tempo pode provocar males do fígado, do coração, do aparelho digestivo e por aí vai. Seu médico mandou-o parar com a experiência senão ele morreria daquilo. De meter medo em gordinhos, em magros candidatos a obesos, em apressados na hora das refeições e em viciados nesses bichos-papões.

O cineasta provoca a situação a partir de uma dada verdade: comer fast food em excesso causa danos à saúde. Ele é seu próprio personagem, uma tendência de documentários, especialmente europeus, nos quais os cineastas se colocam diante da câmera em buscas pessoais – em outro grau, é o que faz Michael Moore também.

Super Size Me mostra que o aumento brusco de peso provoca indolência, estado de depressão, disfunção sexual. Estava na cara do cobaia-documentarista. Mas a culpa é só do McDonald’s? E as outras lanchonetes fast food? E as despensas carregadas com comida enlatada ou semipronta? A indústria alimentícia tem um dos mais poderosos lobbies no Congresso norte-americano – afinal são dezenas de milhões de pessoas que precisam ser alimentadas todo dia.

Spurlock tomou a parte pelo todo e elegeu a famosa multinacional do Big Mac como a responsável pelo aumento da obesidade que fez dos Estados Unidos o país mais gordo do mundo. Coincidência ou não, quando o filme foi exibido em 2004 nos Estados Unidos o McDonald’s passou a oferecer alimentos ditos saudáveis – saladas, água de coco, carnes grelhadas, laticínios com frutas, frutas de sobremesa etc.

A pior face da globalização, ou integração socioeconômica, ou dominação cultural como queiram, é quando os males dos países desenvolvidos desembarcam em países em desenvolvimento com pompa e circunstância de modernidade. A obesidade passou a ser preocupação de saúde no Brasil, ao contrário do que imaginava o presidente Lula quando lançou o seu programa Fome Zero. E por aqui o consumo de carne vermelha – inimiga número 1 das artérias coronárias – é uma obsessão. A vida urbana e cheia de facilidades não mudou hábitos alimentares, que só fazem acumular calorias com menos atividades físicas.

Somando-se todos esses dados, Super Size Me resulta em uma teoria da conspiração: estariam as indústrias alimentícias aliadas ao governo para manter a população indolente, menos propensa à rebeldia, e sob controle? Spurlok não conclui, apenas sugere.

Obesidade e o câncer provocado pelo cigarro são as duas causas de mortes mais evitáveis. O movimento antitabagista é mais forte e não é incomum alguém se dirigir a um fumante dizendo “pare com isso”, “largue o cigarro” ou “não seja fumante”. É socialmente aceitável – em restaurantes, por exemplo, existem alas de fumantes – condenar o vício do tabaco. Já condenar o vício em açúcar, carboidratos, gordura animal e demais componentes da fast food não é tão comum. Dificilmente alguém diria “pare com essa gordura”, “não ouse comer a sobremesa” ou “não seja gordo”, comenta Spurlock.

Há uma maligna coincidência entre o título do filme e seus capítulos inicial e final. Super Size Me começa com o que Spurlock chama de “última ceia” antes da experiência, uma refeição normal, com muitos vegetais. Termina com a “última ceia” só de hambúrgueres e guloseimas do McDonald’s. A palavra “super” tem as mesmas letras de “supper” (ceia, pronuncia-se sâper). Foneticamente, a diferença é sutil; cardiologicamente, o baque é brutal.



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