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Em nome da mãe
Cássio Gomes Neves
Do Diário do Grande ABC
22/10/2006 | 17:57
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Paulo Coelho. O nome logo se associa a fama, a orientação espiritual, talvez antes até do que a literatura. É bom, como consagram milhões de leitores, sequazes, discípulos e fiéis? É ruim, como sugere uma certa prudência crítica – e que pode equivocar-se quando aderida a conceitos e referenciais? A resposta não parece exatamente fácil. Não porque seja difícil de lucubrar, mas porque a pergunta não é exatamente essa.

Paulo Coelho é famoso. Vendeu quinquilhões de livros (de fato, são 75 milhões em todo o mundo); foi comercializado para não sei quanto países e traduzido para não sei quantos idiomas (na verdade, foram 150 países e 62 idiomas); escreveu trocentos livros (a rigor, são 21 até agora).

Paulo Coelho é guru. Quando começou a publicação serial de seu novo livro, o 21º, A Bruxa de Portobello, em um blog na internet, mais de um leitor, sequaz, discípulo e fiel dirigia-se a ele como mestre, luz do meu caminho, guia dos meus passos e assim adiante.

Paulo Coelho é escritor. É mesmo? Talvez seja esta a indagação adequada. Em vez de afirmar, supõe-se perguntar: Paulo Coelho é escritor? Ou é, como poucas vezes nega, um digitador do bem-estar astral? Um redator de um novo confucionismo, que redige sabedoria embalsamada, que preenche páginas com aquilo que o leitor, sequaz, discípulo e fiel gostaria e se sentiria confortado em ler? Paulo Coelho é um autor?

Todos por um – A pergunta é conseqüência da apreciação, justamente, de A Bruxa de Portobello (Planeta, 294 págs., R$ 19,90), volume recém-lançado. Não é uma pergunta que caiba a toda sua bibliografia. Seria desonesto, da parte de quem teve um primeiro, último e único contato com Coelho há uns 15 anos – por ocasião da leitura de O Alquimista – aplicá-la a toda sua carreira.

Para quem ignora os 20 livros restantes do escritor carioca – e desconhece se a metalinguagem é obsessão freqüente – A Bruxa de Portobello sugere certo esforço de reavaliação literária, ensaiado aparentemente em O Zahir, volume anterior e que tinha como protagonista um escritor de prestígio mercadológico internacional que repensava sobre seu ofício.

Como um Cidadão Kane, o novo livro procura conceber sua protagonista a partir de vários depoimentos, todos em primeira pessoa, de gente que a conheceu: a mãe adotiva, um jornalista por ela apaixonado, sua mestre espiritual, uma discípula de seus ensinamentos, a mãe natural...

Um narrador anônimo, que se apresenta ao princípio e ao fim do livro, exibe-se como coletor dos testemunhos para transformá-los em biografia de Sherine Khalil, vulgo Athena, a protagonista, abandonada pela mãe cigana, adotada por um casal de libaneses, emigrada para Londres por força da guerra civil em Beirute, divorciada de um engenheiro e mãe de um menino, mistura de Virgem Maria, Maria Madalena, Circe e Antígona, bancária cujo tino profissional a credencia para uma bem-sucedida carreira de corretora de imóveis no deserto (!), mulher que a partir de um ritual coreográfico russo transforma-se em porta-voz de divindades femininas e de um culto telúrico que confronta-se com religiões cristãs e de exaltação à masculinização da fé. Pronto: mais do que um Cidadão Kane, Portobello é tecido dos fios de um Dan Brown – cujo O Código Da Vinci populariza o antimito da fêmea em confronto com dogmas cristãos – e da Bíblia, que orquestra vários timbres, de apóstolos e profetas, para conceber o mito de Cristo.

É nesse aspecto que se questiona se a prática de Coelho é literatura. São múltiplas as vozes narradoras de seu livro, mas um só vocabulário, um só acorde de escrita. Indiferente às vicissitudes de discurso de cada um dos personagens-narradores, só é visível um léxico: o de Coelho. Em vez de adotar a boca da mãe adotiva, e suas idiossincrasias, como alternativa discursiva, apenas a convoca como alto-falante de suas necessidades como pregador. Assim é com todos os outros narradores; que afinal não são narradores, apenas púlpitos, com nomes e sobrenomes, para a pregação de conselhos espirituais e recomendações de sucesso nas relações afetivas e profissionais, com dicas sobre o convívio no ambiente de trabalho, na vida amorosa e até sobre dieta. Se há vestígios de tornar tudo isso literatura, de providenciar fruição de leitura e envolvimento com os personagens, são mínimos. A Bruxa de Portobello, no seu tecido de Linha Direta espiritual (há sugestão de assassinato, à guisa de narrativa policial), ignora a concepção de sensações geográficas, seja em cenários ou na geografia social e humana.

Isento – A resposta começa a ser respondida. Paulo Coelho parece mais inclinado, agora, a auto-ajuda. Não há assimilação descritiva a não ser a do certo-e-errado nas bifurcações da vida, esse tesouro da bibliografia motivacional. Personagens não têm paixão (mas esse é um dos motores enunciados); não há conflitos, somente assoreamento literário que dá vaga ao pastoreio do leitor, sequaz, discípulo e fiel em busca de minutos de sabedoria. Se por um lado parece haver um esforço auto-crítico de Coelho – por meio de um mestre de caligrafia ele fala que preencher uma folha de papel é projetar a sua alma pelo veículo literário –, por outro, não existe ímpeto de botar a serviço da literatura os códigos da ficção para expressar sua verdadeira posição, a de guru, mestre, pastor; ou mesmo uma vocação de fachada, que seria estudar a mulher como ponto de fuga da humanidade.

Quando envereda pelas metáforas (que por si só já são ferramenta literária desgastada), usa as mais surradas, metáforas encontráveis em folheto de mala direta, como comparar dificuldades da vida com o aço manuseado pelo ferreiro. Estabelece-se como ramal de divulgação de frases feitas e de novenas new age para atender à incansável busca da felicidade por seu leitor, sequaz, discípulo e fiel.

Paulo Coelho é escritor se o referencial for a catalogação técnica. Mas autor não é; não no sentido de exercer a literatura como meio de questionamento real sobre a natureza humana. Talvez por isso goze de certa isenção crítica de parte da mídia, que lava as mãos quanto a avaliações e exegeses de sua obra. Ou seria porque, caso se debruçasse de forma crítica sobre sua obra, essa mesma parte da mídia estaria excluída do restrito rol de entrevistas exclusivas e de ser ciceroneada por Coelho em suas viagens, seja rumo a Compostela ou na Transiberiana?




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