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Cartas revelam papo de poetas
Por Alessandro Soares
Do Diário do Grande ABC
04/03/2001 | 17:26
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Como se forma um poeta e como ele dialoga com os grandes pensadores de seu tempo. Sob o ponto de vista da formação literária de João Cabral de Melo Neto (1920-1999) e sua amizade intelectual e diálogo crítico com Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) e Manuel Bandeira (1886-1968), a crítica Flora Sussekind reuniu 104 documentos (cartas, bilhetes, telegramas, cartões e poemas) em Correspondência de Cabral com Bandeira e Drummond (Nova Fronteira, 320 págs., R$ 32), previsto para chegar às livrarias hoje.

A troca de cartas abrange o período que vai de 1940 até o fim dos anos 50, período da publicação dos primeiros livros de Cabral, O Cão sem Plumas entre eles, da afirmação da amizade epistolar com os dois poetas mais velhos e da estruturação de seu método poético. Cabral demonstra como a poesia de Drummond influenciou sua obra, mas adota um tom de reverência com o autor mineiro no início da década de 40 até 1946. Após ter lido Brejo das Almas, Cabral decidiu fazer poesia, impressionado pela “dicção áspera sem oratória escorregadia” de Drummond.

Mais aberto e desenvolto é o diálogo do autor de Estrela da Vida Inteira com Bandeira, de 1947 a 1958, quando Cabral já tinha definido sua poética e era vice-cônsul em Barcelona, na Espanha. Cabral encantou-se com o poeta ao ler Não Sei Dançar em uma antologia. “Foi um deslumbramento”.

Os três grandes poetas brasileiros do século XX falam entre si de poesia e, também, aproveitam para trocar críticas mútuas, nada ásperas (Bandeira chega a pedir explicações a Cabral sobre duas imagens referentes a rio, “dessemelhantes e opostas”: “cão sem plumas” e “espada cortante”).

Seus registros denotam também a vida cultural brasileira da metade do século: as eleições de 1950 e o fim do Estado Novo, a disputa entre Camargo Guarnieri e Koellreuter, a afirmação dos poetas da chamada Geração de 45 ao movimento concretista, a ditadura de Francisco Franco na Espanha e o registro do cotidiano do escritor-funcionário público.

Se a correspondência não era a marca destes três poetas, o epistolário reunido é uma fonte de estudos sobre a poesia moderna brasileira. Cabral, ainda vivendo em Recife, aproxima-se de Drummond, então chefe de gabinete do ministro da Educação Gustavo Capanema, e o convida a participar do Congresso de Poesia que realizaria na capital pernambucana.

Com Bandeira, a correspondência começa quando Cabral, no Consulado em Barcelona, pede ao poeta seus poemas para publicar uma antologia, Mafuá do Malungo. Drummond deixa transparecer sua fase política e metafísica, e se revela um leitor de críticas, ao contrário do que se supunha. Bandeira reitera a simplicidade e o desentranhamento, pede informações a Cabral sobre a nova poesia catalã e repassa-lhe o poema O Bicho (“Vi ontem um bicho/Na imundície do pátio/Catando comida entre os detritos.../O bicho, meu Deus, era um homem”), que Cabral deve ter sido o primeiro a ler em janeiro de 1948.

São 42 documentos trocados com Bandeira e 62 com Drummond. O acervo manipulado para a pesquisa pertence ao Arquivo Museu de Literatura Brasileira da Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio, e também a Stela Cabral de Melo, primeira mulher do autor de Morte e Vida Severina, que preservou a coleção particular do poeta. Ao que tudo indica, ainda há bem mais para ser explorado.




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