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O homem que matou Euclides
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21/12/2009 | 07:03
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Uma surpresa desagradável aguardava a historiadora Mary Del Priore tão logo terminou a escrita de Matar Para Não Morrer (Objetiva, 160 págs., R$ 29,90) em que narra o assassinato do escritor Euclides da Cunha por Dilermando de Assis, amante de sua mulher, Anna, em 1909. "Como sempre faço, enviei uma cópia do texto para os herdeiros dos personagens para eventuais comentários", conta ela, que, em troca, foi aconselhada a não publicar o livro sob a pena de ser processada - os netos discordavam da forma como foram apresentados certos fatos e prometiam recorrer a advogados.

Matar Para Não Morrer acompanha a tragédia que vitimou o autor de Os Sertões, mas privilegiando Dilermando de Assis, jovem cadete que o alvejou com três tiros. "Ele reagiu a um ataque de Euclides, que buscava limpar sua honra. Mesmo assim, Dilermando foi transformado em vilão, rótulo que o perseguiu até o fim", conta Mary que, durante a pesquisa, garimpou informações em jornais e autores do início do século, muitos deles, como o jornalista João do Rio, espectadores da cena histórica.

"Baseei-me em dados comprovados historicamente mas, mesmo assim, Anna Sharp e Tania Andrade Lima, netas de Dilermando e Anna, afirmaram que eu denegria seus familiares". Em carta à escritora, Anna Sharp reclamou das descrições físicas e das atitudes comprometedoras dos avós que figuravam no livro - procurada pela reportagem, ela preferiu não se manifestar. "Mas é justamente a junção da vida pública com a privada que revela o verdadeiro perfil dessas figuras públicas", defende-se Mary. "No Brasil, os heróis são vistos apenas sob uma chave: a elogiosa", diz. Curiosamente, a autora recebeu apoio integral de Dirce, filha de outro casamento de Dilermando.

Mesmo sob pressão - um escritório de advogados de São Paulo enviou carta à Objetiva em setembro, solicitando a não publicação da obra -, Mary e a editora decidiram prosseguir. Atitude distinta da tomada pela Planeta que, em 2007, fez um acordo com os advogados de Roberto Carlos, evitando a abertura de um processo: alegando que sua privacidade havia sido invadida, o cantor queria interromper a venda de Roberto Carlos em Detalhes, biografia não autorizada de Paulo César de Araújo, o que de fato aconteceu.

Trata-se do caso mais notório da delicada relação entre editoras e biógrafos com descendentes de biografados. "Não existe mais a figura do censor, de tesoura na mão. Mas existe uma forma de censura explícita, que proíbe a jornalistas, pesquisadores, historiadores e jornais, a publicação de matérias e entrevistas, e a censura mais implícita, que se configura em mecanismos repressivos que se exercem de maneira dissimulada na sociedade", comenta Mary.

"Chegamos a recusar a biografia do Roberto Carlos, escrita pelo Paulo Cesar Araujo, por medo da reação do artista. Também preferimos não fazer a de Ademar de Barros e a do Torquato Neto", conta Luciana Villas-Boas, diretora editorial da Record. "Toda biografia que vamos publicar é lida com lupa por nosso advogado. Em geral temos mais medo de personagens secundários do que do próprio biografado".

O problema está em uma brecha no Código Civil que possibilita descendentes de biografados embargarem obras que julgam caluniosas. "Assim, como consequência de uma legislação equivocada (única no mundo), netos de personagens históricos têm o direito de censurar e cercear o trabalho de historiadores relativo a fatos passados há mais de um século", reclama Roberto Feith, da Objetiva.

"Nossa legislação absurda está matando um gênero literário que até pouco tempo atrás revelava-se dos mais promissores no Brasil", completa Luciana. A esperança está no projeto de lei do deputado federal Antonio Palocci que propõe alterar o artigo 20 da Lei Federal nº 10.406, justamente o evocado pelas famílias de biografados. O projeto, porém, aguarda espaço para ser votado na Câmara.

Enquanto isso, o trabalho continua ameaçado. A fim de evitar confusões, o livro de Mary Del Priore foi publicado sem nenhuma ilustração. "Meus leitores também devem ter notado que a obra saiu com menos páginas que as outras, e com linguagem mais telegráfica em alguns trechos", diz.




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