Cultura & Lazer Titulo Especial
Janela da alma

Marília de Andrade, filha do modernista Oswald de Andrade, volta ao sítio onde passou a infância, em Ribeirão Pires

Miriam Gimenes
22/07/2018 | 07:00
Compartilhar notícia
André Henriques


 Era uma vez uma menina, que tinha como passeio preferido ir ao sítio da família, o Boa Sorte. Lá encontrava sua vaca, a Dora, a quem gostava de desenhar, e a cachorra Isadora, parceira de aventuras nos arredores da casa-sede que, para ela, era um palácio inglês, digno de um conto de fadas. No local, mais precisamente no jardim de inverno, via o pai ler e escrever sem parar, mas não entendia sua profissão. “É a lembrança mais forte que tenho dele.”

Seis décadas se passaram. Era uma vez uma mulher, PhD em Psicologia pela Universidade de Columbia (Estados Unidos), que construiu promissora carreira na dança – implantou o curso desta arte na Unicamp e integrou, nos 1970, o Ballet Stagium – e só foi entender que o ofício de seu ídolo foi de fato importante no alto dos seus 45 anos, à época em que ele completaria um século de vida. “É uma pena que só tenham dado valor à sua obra depois que morreu. Essa foi sua maior frustração”, lembra.

A protagonista da história em questão atende pelo nome de Antonieta Marília de Oswald de Andrade e tem 72 anos. Ela é filha da normalista Maria Antonieta D’Alkmin e do escritor modernista Oswald de Andrade, que morreu quando ela estava prestes a completar 9 anos. Esta semana, a convite do Diário, a ‘menina’ revisitou algumas das folhas mais importantes do livro de sua vida, as que compreendem as idas ao sítio em Ribeirão Pires, que pertenceu à família e foi vendido logo após a morte do escritor, em 1954. “É como reviver a minha infância, você (repórter) não tem noção do que isso representa para mim”, disse, emocionada, ao sair da sua casa no bairro Higienópolis, em São Paulo.

Marília estima que a última vez em que pisou na cidade do Grande ABC foi em janeiro de 1954. “Depois disso papai ficou muito debilitado por conta da doença (tinha diabete, problemas cardíacos e nos rins) e morreu em outubro”, lembra. Os problemas financeiros herdados pela viúva fizeram com que ela tivesse de se desfazer de alguns bens e o terreno em Ribeirão foi um deles. “Achei que ele tivesse se perdido com o tempo”, refletiu Marília, a caminho do éden da sua infância.

E foi neste trajeto que sua memória, aquela tatuada em sua alma, foi surgindo. Lembrou dos momentos gostosos vividos em família no espaço – o qual Oswald recebia parentes e amigos, porque ‘gostava de casa cheia’ –, do amor que a mãe dedicava ao marido, além das vezes em que tentou entender a obra do escritor e não conseguiu. “Mamãe falava: ‘Diga ao seu professor que seu pai foi um dos que lideraram a Semana de Arte Moderna’. E eu fui, adolescente, envergonhada falar. Ele perguntou quem era eu na lista de chamada. Disse o nome inteiro, que inclusive tem o Oswald de Andrade, e ele: ‘Ah, então você é filha do Mário de Andrade? (risos).” Àquela época dedicava, acrescenta, apenas um parágrafo do livro escolar para dizer o que foi o movimento modernista. Passadas algumas décadas – e prestes a completar 100 anos –, o evento ganhou a proporção merecida e Oswald, seu devido reconhecimento.

Tanto que antes de finalmente chegar ao Boa Sorte, Marília passou na Prefeitura de Ribeirão Pires e foi recebida pelo prefeito, Adler Kiko Teixeira (PSB), a primeira-dama, Flavia Dotto, os secretários e o diretor de Patrimônio da cidade, Marcílio Duarte, responsável pelo tombamento do sítio. Agradeceu a recepção e fez questão de doar toda obra do pai para a biblioteca municipal. “Sugiro que todos leiam Um Homem Sem Profissão, que é uma introdução a toda obra de Oswald, é de leitura fácil e ele escreveu no Sítio da Boa Sorte”. E seguiu ansiosa para visitar o lugar em que estão algumas de suas mais preciosas memórias e onde sentiu, visivelmente, uma das maiores emoções de sua vida.

‘Que linda. Estou toda arrepiada’, disse Marília ao entrar na casa
Foi cruzar o portão de entrada do Sítio da Boa Sorte que Marília voltou a ter 8 anos. Com os olhos marejados, foi avistando o ‘palácio inglês’, que agora ganhava o status de casa. “Que coisa mais linda!”, exclamou. Ainda trêmula, cumprimentou o atual proprietário, Ricardo Conde, trocou algumas ideias e tratou de entrar com o pé direito – superstição herdada do pai – na casa que já foi de sua família. “Estou toda arrepiada.”

Em cada cômodo uma surpresa. Não se lembrava, por exemplo, que era costume da época ter uma pia em cada quarto. No mesmo corredor reconheceu o banheiro. “Tinha uma banheira aqui, né? Uma vez meu irmãozinho (Paulo Marcos) caiu e cortou a testa. Tivemos de ir de charrete à noite para o hospital de Ribeirão.” Uma vez na cozinha, onde costumava ficar com as babás – ‘lugar de criança, nessa época, era com elas’ – emocionou-se ao ver o fogão à lenha, mantido por Conde.

O ponto alto do reconhecimento foi a lareira, que era adorada por Oswald, e o jardim de inverno, na verdade uma varanda envidraçada que, segundo ela, tinha vista para um lago, que não existe mais. “A lembrança que tenho é da família toda aqui, este espaço todo mobiliado. Ficávamos muito aqui e víamos a neblina, que chegava à tarde. Era aqui que ele escrevia”, lembrou.

Nos cômodos superiores, provavelmente o quarto dos hóspedes e das crianças, após viajar em suas lembranças, ao contemplar a vista pela janela, Marília foi, de fato, às lágrimas. “Tive uma vida muito trágica e perdi a família inteira (depois do pai, o irmão morreu em um acidente de carro, aos 20 anos, e a mãe se suicidou em 1969). E sempre me pergunto: ‘Por que sobrei? Quando você tem tragédias na vida fica com sentimento de culpa. Acabou que hoje sou curadora da obra do Oswald e, de repente, me cai como um raio do céu o Sítio da Boa Sorte. Estava pensando agora que fiquei para reencontrar esse sítio. Foi uma coisa tão forte na minha infância que achava que só estava na memória. Estou muito feliz. Aqui fecho um ciclo.”

> Mais informações no DGABC TV




Comentários

Atenção! Os comentários do site são via Facebook. Lembre-se de que o comentário é de inteira responsabilidade do autor e não expressa a opinião do jornal. Comentários que violem a lei, a moral e os bons costumes ou violem direitos de terceiros poderão ser denunciados pelos usuários e sua conta poderá ser banida.


;