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“Meu livro tem surdo como protagonista”
Por Marcela Munhoz
Do Diário do Grande ABC
23/02/2014 | 07:00
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Arquivo Pessoal


Quando era adolescente, a professora Sylvia Lia Grespan Neves – surda de nascença – sempre lia romances, mas nunca com personagens sem audição ou com pessoas deficientes. Foi por isso que resolveu escrever um. Na história de Mãos ao Vento, a jovem surda Paola é a principal. “Mostra as relações e conflitos entre surdos e ouvintes, além do sentimento de alguém que vive em um mundo sem sons”, diz a autora, que também é diretora regional de São Paulo da Federação Nacional de Educação e Integração dos Surdos.

Sylvia contou ao D+ que quando era criança, foi proibida de usar Libras em escola especial para surdos e que quando se mudou para colégio de ouvintes, precisava complementar os estudos sozinha na biblioteca, porque não tinha um intérprete. "Me sentia invisível, não fazia parte do mundo dos ouvintes. Hoje penso que esse ensino foi pouco ou nada significativo para mim.” Mesmo assim, ela fez faculdade de Biblioteconomia, Pedagogia e Letras Libras, além de concluir um mestrado em Educação. Leia entrevista completa:

D+: Conte um pouquinho da sua história. Qual a causa da sua surdez?
Sylvia: Sou surda de nascença. Tenho dois irmãos: a mais velha é ouvinte e o do meio é surdo. A causa da nossa surdez é desconhecida, pois minha mãe foi em vários médicos para saber se existia possibilidade de tratamento. Mas, os médicos falaram que era impossível. Segundo eles, o único jeito seria colocar o aparelho analógico de surdez e nos encaminhar para uma escola especial.

D+: Como aprendeu a se comunicar?
Sylvia: Fui proibida de usar Libras (Língua Brasileira de Sinais), linguagem oficial da comunidade surda brasileira, tal como aponta a lei 10.436, de 24 de abril de 2002. Na escola de surdos éramos obrigados a oralizar, mexer a boca para produzir os sons da língua portuguesa e ler os lábios das professoras. Para aprender a falar, colocávamos uma mão no pescoço delas e a outra no nosso, para sentir a vibração. Contudo, na hora do recreio, as crianças surdas maiores nunca usavam a fala da língua portuguesa que aprendiam na sala de aula. Elas usavam libras escondido e foi com elas que eu a aprendi.

D+: Como foi a sua adolescência?
Sylvia: Fui estudar em escola de ouvintes e não tinha intérprete. Era difícil acompanhar as aulas e entender o que os professores estavam explicando. Observava as roupas, os corpos, as expressões faciais deles, enquanto contava o tempo para ir embora. Só consegui, porque copiava os cadernos dos colegas. Quando não entendia a matéria, ia à biblioteca procurar outros livros com explicações mais fáceis. Sempre sabia o nome do autor, capa dos livros. Romances, biografias e revistas foram o meu mundo sem língua de sinais. Mas, de modo geral, eu me sentia invisível, não fazia parte do mundo dos ouvintes. O meu mundo só era alegre, me sentia integrada e participativa com as pessoas com as quais podia me comunicar, isto é, com os surdos que utilizavam Libras. Sem ela, me sentia vazia. Hoje, penso que esse ensino foi pouco ou nada significativo para mim.

D+: E na Faculdade?
Sylvia: Fiz o curso de Biblioteconomia na Universidade. Foi bem mais difícil do que nas escolas anteriores, por não ter intérprete. Estava acostumada com Ensino Fundamental e Médio, em que livros didáticos são comprados e as professoras davam as aulas acompanhando o conteúdo desses livros. Na faculdade, tudo o que não era preciso era comprar livros. Os professores pediam para tirarmos cópia do material. O fato de as aulas serem em forma de debate entre alunos e professores era um grande problema, pois eu não entendia nada do que se passava. A maioria das aulas se desenvolvia oralmente e havia pouquíssima coisa escrita. Mas, mesmo assim, me formei em Biblioteconomia e, posteriormente em Pedagogia e Letras Libras, onde há intérpretes. Mais recentemente, concluí meu mestrado em Educação na Unimep em Piracicaba.

D+: Fale um pouquinho sobre a sua profissão e como é o seu dia a dia.
Sylvia: Sou professora da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, onde leciono Libras para alunos de Fonoaudióloga, Enfermagem e Medicina. Também sou diretora regional de São Paulo da Federação Nacional de Educação e Integração dos Surdos (Feneis), entidade representativa da comunidade surda brasileira que, como tal, defende educação de qualidade para surdos, que respeite a especificidade lingüística como usuários das Libras.

D+: Você acha que faltam filmes e livros que retratam a realidade dos surdos?
Sylvia: Sim, é muito raro encontrar livros assim. Existem alguns filmes, mas são pouquíssimos.

D+: Na sua opinião, a internet facilitou a vida dos surdos?
Sylvia: Muito, pois possibilita a comunicação com os outros surdos de diferentes comunidades e no mundo todo.

D+: Você acha que ainda existe muito preconceito?
Sylvia: Sim, por falta de conhecimento das pessoas.

D+: Que mensagem deixa para adolescentes e jovens surdos?
Sylvia: Se aceitar como é, pois a vida é curta para aprender a ser e superar todos os obstáculos que surgem no cotidiano.




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