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Bahia 'ignora' YouTube e aposta no seu aplicativo para 'substituir' pay-per-view
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24/07/2020 | 07:00
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A crise do coronavírus e o novo modelo de transmissão advindo de Medida Provisória (MP) 984, assinada pelo presidente Jair Bolsonaro, impulsionaram os clubes brasileiros a investirem em seus canais no YouTube, seja com transmissão de partidas oficiais, jogos-treino ou lançamento de camisas, em uma ação para aumentar a audiência e o alcance nessa plataforma.

Mas há uma exceção: o Bahia optou por deixar em segundo plano essa possibilidade apostando no lançamento do seu próprio aplicativo. De acordo com o seu presidente, Gulherme Bellintani, não é possível obter monetização relevante pelo YouTube. Por isso, o clube aposta no Sócio Digital, acreditando que em até dois anos obterá com o aplicativo a mesma receita que consegue pelo acordo de pay-per-view, ainda mais que a partir de 2021 poderá transmitir jogos do Campeonato Baiano pela plataforma.

A postura está na contramão de diversos clubes, mas o Bahia é um dos líderes da união da maioria deles, defendendo o conteúdo da MP 984, por acreditar que ela fará aumentar a arrecadação das equipes, embora destaque que só haverá divisão mais igualitária dos recursos se os times caminharem juntos.

Nesta entrevista ao Estadão, o presidente do Bahia também defende o fim dos Estaduais, embora não veja um movimento para isso, e não crê que o futebol brasileiro esteja vivendo o início de uma hegemonia dentro dos campos. Além disso, assegura que o clube vai intensificar a implementação de iniciativas de inclusão tão defendidas em campanhas da sua gestão.

Confira a íntegra da entrevista com Guilherme Bellintani:

A mudança nos direitos sobre transmissão dos jogos veio através de uma medida provisória. Isso foi uma surpresa para a maioria dos clubes? E o fato de não ter se dado por um projeto de lei pode trazer insegurança aos investidores?

A forma como aconteceu não foi a planejada, nem do modo que devem acontecer as mudanças no futebol, que devem vir de desdobramentos de discussões e construções coletivas. Mas o mérito da MP atende a maioria dos clubes brasileiros. A MP se perpetua se virar lei, sendo aprovada no Congresso Nacional. Não importa se a origem é por um projeto de lei ou medida provisória. A origem fica apagada

Há muita desigualdade na distribuição das receitas de transmissão. Como a MP e o seu conteúdo podem ajudar a combater a desigualdade?

Não tenho essa ilusão, mas é um caminho para a redução. Eu acredito muito nisso. E que também é um caminho para aumentar o tamanho do bolo. Primeiro, o bolo precisa ser feito. E as fatias não podem ser tão diferentes. O direito do mandante torna o bolo maior por colocar na mesa jogos que estavam fora. Mais da metade das partidas do Brasileirão não são transmitidas em TV fechada porque há uma lei, a única no mundo, que divide o direito de transmissão. A MP resolve isso, com exceção se algum clube não vender para ninguém ou nem fizer a sua transmissão, o que é muito improvável. Com mais jogos, há mais remuneração. O equilíbrio na divisão das receitas dependerá da união dos clubes. Quanto maior for esse bloco, maior será a união. Se isso não acontecer, a disparidade poderá até ser maior.

Recentemente, 16 clubes da Série A se manifestaram juntos a favor do conteúdo da MP. Como se deu essa união e qual é a sua importância?

Essa união vem amadurecendo há algum tempo, embora as pessoas não acreditem. É assim com a Liga do Nordeste, um campeonato estruturado pela liga. Outro bloco que demonstra isso é o dos 8 clubes que assinaram com a Turner. Tudo é feito coletivamente, como o processo decisório. E a Comissão Nacional de Clubes (CNC), de um ano para cá, tem demonstrado isso. Ter uma manifestação de 16 clubes da Série A, com os 19 da B e os times da Liga do Nordeste é uma demonstração de união.

Há problemas nessa união que redundou no acordo com a Turner?

A crise ou une ou separa. E está unindo. É uma experiência nova, tem muitas discussões, muitas divergências, o que é natural. E buscamos a convergência. Vou te dar um exemplo. Na CNC, tivemos uma reunião emblemática, quando tomamos a decisão sobre a venda dos direitos internacionais. A nossa votação para um determinado modelo comercial teve placar de 10 a 9. Sugeri que não fechássemos questão por isso e voltasse a conversar 48 horas depois, corrigindo as ideias do grupo que perdeu. E aí voltamos a conversar, fizemos correções e saiu 19 a 0.

O contrato de transmissão do Brasileirão é válido até 2024, portanto, não haverá mudanças significativas até lá, mesmo que a MP se torne lei. O que esse tempo pode ajudar nas negociações que virão? E como você imagina o modelo de transmissões daqui a quatro anos?

Será um novo contexto jurídico e com uma revolução de tecnologia, com estrutura, com internet e plataformas melhores, streaming melhores. Também haverá a redução da força econômica dos players tradicionais. As tevês abertas passam por uma crise e isso vai impactar. Vamos ter uma realidade absolutamente diferente. As pessoas falam equivocadamente em substituição de players. O que haverá é uma mudança de contexto, com a convivência entre diferentes players. Não será um monopólio substituindo outro. Acredito que a Globo possa não ter dinheiro para comprar tudo, talvez a Amazon e o Facebook não queiram comprar tudo, o pay-per-view não se sustente como está, os clubes tenham suas próprias plataformas, que poderão transmitir uma parte de jogos. Ainda vai demorar um tempo para entendermos quais seroa os melhores caminhos. Temos de tatear, sentir as circunstâncias.

Qual será o papel ocupado pelo streaming?

Ele não é uma nova plataforma, é um novo meio. Vai brigar com algumas plataformas, mas vai coexistir. Na situação atual, não substitui a TV aberta, que chega em todos os lares. Hoje, tenderia a competir com o pay-per-view. Mas já compete com a TV fechada, como acontece com o DAZN. Um Flamengo x Corinthians no streaming pode pegar parte do público da TV aberta, embora vá ser menos democrático, ter menos alcance. Se nós estivéssemos hoje com todos os direitos liberados, provavelmente as novas plataformas de streaming, de clubes, competiriam com o pay-per-view. Mas em 2025 isso pode ser muito diferente.

O Bahia lançou recentemente um aplicativo próprio, o Sócio Digital. Quais são os planos do clube com essa iniciativa?

Brinquei que é uma mistura de Netflix, com BBB, Esporte Espetacular e rede social. Estamos criando novos conteúdos, porque o de jogo está vendido. A partir dessa limitação, usamos todo o conteúdo entre os jogos. Estamos na contramão dos outros clubes, que estão apostando em TVs no YouTube, que entendemos não dar perspectivas de monetização. Criamos um aplicativo que oferece tudo do YouTube e muito mais, com pesquisa no celular, tabela de jogos, classificação dos campeonatos, loja virtual, além de tudo que pode ser transmitido. E com usabilidade mais fácil e amigável. Tínhamos 275 mil inscritos em outro aplicativo e queremos converter isso para 50, 60 ml assinaturas em até 12 meses. Temos uma linguagem única, parecida com redes sociais, com filmagens pelo celular, transmissões ao vivo, com informalidade. Conseguimos assim produzir muito mais por um preço baixo. Não me preocupo com transmissão de jogos ou números de seguidores no YouTube.

Em 2021, o Bahia pretende transmitir os jogos do Campeonato Baiano por essa plataforma. A receita obtida com o Sócio Digital pode substituir o acordo pelo Estadual?

Acredito que já pode acontecer em um ou dois anos em relação ao pay-per-view. O que o Bahia recebe é baixo, eu recebi R$ 9 milhões no ano passado e tudo indica que nesse ano eu vou receber menos. Se eu tiver 70, 80 mil assinantes, sendo que fechamos a primeira semana com 7 mil, igualo o que recebo com o pay-per-view. Hoje tenho 7 mil só com treinos e bastidores. O máximo que transmito é o rachão.

Mas o investimento nas transmissões não pode diminuir o lucro com o aplicativo?

O custo é infinitamente menor do que o da transmissão pela TV. Fiz o orçamento para o Campeonato Baiano com gasto de R$ 500 mil, contratando produção e narrador para todos os jogos. Um jogo para a TV custa pelo menos R$ 300 mil.

O calendário do futebol brasileiro pode passar por mudanças profundas em 2021 e que incluiriam o fim dos estaduais?

Filosoficamente, eu gostaria. Mas não acho que exista um movimento firme de clubes e da CBF para acabar com os estaduais. Eles vão se acabar, infelizmente. Se fossemos estratégicos, acabaríamos com o produto antes. Na prática, eu ainda creio que haverá uma convivência mortal dos estaduais com o Nacional. A minha posição é que os estaduais fossem jogados com times de transição pelos clubes de Série A e B, o que ajudaria a revelar jogadores que ou abandonam a carreira ou são vendidos rapidamente. Paralelo a isso, um Brasileirão com 9 ou 10 meses de duração, conciliando datas com torneios internacionais. Mas não acredito que isso vá acontecer.

As tevês terão participação direta no fim dos estaduais?

A televisão vai ajudar. Na Bahia, não vou jogar e nem o Vitória com o time principal em 2021. Nesse ano, joguei no mesmo dia da Copa do Nordeste, fizemos uma rodada dupla na Fonte Nova. É uma escolha ideológica. Alguns estados podem fazer isso, fizemos em decisão conjunta. Outros estados vão ser forçados pela crise dos contratos de TV.

O Bahia, em sua gestão, tem ficado marcado por posicionamento em questões sociais. O clube tem puxado esse "movimento" no futebol nacional?

Isso já tem acontecido. Mas estou menos preocupado com posicionamentos, onde avançamos bastante. Agora preciso ir além, na postura e nas crenças, implementando avanços no clube e no futebol. Precisamos dizer menos e fazer mais. O Bahia agora está pensando nessa transformação.

Como a sua gestão tem pensado e agido para isso?

Temos começado a fazer. Tem o processo democrático, de transparência, de abertura do clube para a torcida. De permitir e estimular produtos mais populares, brigar pelo preço da cerveja, ter um local para denúncia de mulheres contra o assédio dentro do estádio, fazer o botão do aplicativo para essa denúncia. Ter uma pessoa transexual como vendedora da loja sem ninguém saber disso. A gente quer que isso vire normalidade. Tem muito mais para fazer. Temos poucos negros na gestão do futebol. O Conselho é muito machista numericamente, com pouca presença feminina. Na próxima eleição, teremos a obrigação de presença de 20% de mulheres em cada chapa.

Esse posicionamento também melhora a imagem do Bahia diante de torcedores dos outros clubes?

A gente percebe isso, mas também tem uma reação negativa porque o País está mais intolerante, homofóbico. A gente luta porque acredita, não para agradar. Mas a gente vê gente vestindo a camisa do Bahia mesmo não sendo o seu time principal. Isso é ótimo e se dá por um conjunto de circunstâncias. É por outras questões também não só pelo posicionamento. Hoje temos uma gestão mais equilibrada, honramos compromisso, somos abertos, exercitamos a dignidade, a ética e o respeito. Se fosse só o discurso, mesmo corajoso, mas estivéssemos endividando o clube, seria algo superficial e não teria a mesma repercussão.

O Bahia conseguiu se consolidar como um participante da Série A em sua gestão. Mas a crise atrapalha o clube a dar saltos maiores?

Atrapalha, ainda que sem uma análise comparativa. O Bahia hoje está muito mais fragilizado do que antes do coronavírus. Antes, tingamos um plano de faturar R$ 200 milhões nesse ano. Agora estamos lutando para chegar em R$ 130 milhões. Vai gerar um déficit depois de seis anos. É prejudicial ao projeto. Mas não consigo responder se ao final do coronavírus vamos subir ou descer no ranking de competitividade. A tendência é que a gente suba, saia mais forte do que a média dos clubes, porque vínhamos mais estruturados do que a média. Mas eu não posso cravar isso porque não sei a realidade dos outros clubes. Trabalho loucamente para manter os salários em dia, algo que não acontecia antes. Tenho despesas contratadas que não consigo pagar. A gente vai se fragilizar. Mas se o adversário saiu pior, você se dá bem. A gente não torce por uma pandemia, mas você pode até sair fortalecido.

Como recuperar o que se perdeu com a crise do coronavírus?

O próprio futebol está dando oportunidades, como a Lei das S/A, que está tramitando no Congresso Nacional, os temas relativos à modernização dos clubes, com Profut e fair-play financeiro. Essa é uma chance que o futebol tem de se reinventar em um momento de crise profunda. Se você enfrentar a crise como você encarava a normalidade, você vai perder. O Bahia está muito mais criativo do que seis meses atrás. O Sócio Digital só seria lançado no fim do ano.

O senhor é a favor do clube-empresa?

Acredito e defendo a aprovação de uma legislação. O Bahia não necessariamente vai se tornar uma empresa e tenho críticas às visões de que essa é a única saída para o futebol. O mundo corporativo mostra que há boas empresas e más. A gente vê o Grêmio como uma associação muito bem gerida e compara com empresas trágicas. É preciso ter um DNA associativo, governança. A empresa não é a única solução.

O seu mandato termina no fim do ano, mas se imagina que você buscará a reeleição. Até onde o Bahia pode chegar?

Ainda não decidimos se o caminho é uma reeleição, vamos discutir mais para frente. Mas o que precisamos fazer é ir para o terceiro ciclo. Tivemos o primeiro, da dignidade, tornando o Bahia um time respeitável, mesmo com o orçamento limitado. No segundo, mesmo com a pandemia, estamos aumentando o poder econômico do clube, com protagonismo nacional relevante. O terceiro é tornar o clube mais competitivo para dar voos mais rápidos, com uma base mais forte, ser inovador, apostar em dados para os negócios e dentro de campo, com metodologia, para que sejamos mais competitivos. Já inauguramos um CT moderno. É um ciclo até 2027, 2028, para voltar a disputar com os times grandes.

O Campeonato Brasileiro vai repetir o modelo de torneios nacionais europeus, com hegemonia de um ou dois clubes? É possível evitar essa previsibilidade?

Ainda é cedo para tirar essas conclusões. Há um ano, o Flamengo investia, mas não tinha um modelo vencedor, tanto que o Palmeiras foi campeão em 2019. Não se falava dessa hegemonia antes do Jorge Jesus. Já tivemos outros momentos parecidos, com o São Paulo muito absoluto, com o Fluminense com o patrocínio da Unimed, o Palmeiras com o apoio da Parmalat... Precisamos ver qual é sustentabilidade dos projetos hegemônicos. Há clubes que vão ser sempre competitivos, como o Grêmio. Se o Corinthians encontrar caminhos, se reestruturar, pode ser mais competitivo, tem tamanho para isso, para rivalizar com o Flamengo. O São Paulo também tem.

Há caminhos. O Athletico tem demonstrado isso, chegando perto do topo, tendo ganho Copa do Brasil e Sul-Americana, mesmo tendo uma torcida muito menor do que a média dos clubes do futebol brasileiro. Acho que o Brasil ainda não está se tornando uma Alemanha.

Mas está se tornando uma Espanha?

Não sei, pode ser mais provável do que a Alemanha. Mas o modelo dos clubes espanhóis é muito mais estável do que o nosso. O Flamengo ou o Palmeiras, ou qualquer outro, não tem de provar que são grandes. Precisam provar que são grandes e estáveis. A grandeza sozinha não faz a hegemonia.

O objetivo do Bahia é se consolidar como o maior time do Nordeste?

Isso é uma coisa para a torcida. Quanto mais o Nordeste estiver forte, melhor para nós. Queremos ser mais competitivos nacionalmente. É melhor se o Bahia for o 6º, o Fortaleza ficar em 8º e o Ceará em 9º do que ter o Bahia sozinho e em 5º Eu prefiro assim do que ficar arrotando ser o maior, mas com o futebol do Nordeste fraco.




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