Política Titulo 60 anos em 60 entrevistas
‘MP tem de ir para rua, ver as dificuldades’
Raphael Rocha
07/05/2018 | 07:00
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Claudinei Plaza/DGABC


Promotor de Justiça em Santo André há 24 anos, Marcelo Nunes acredita que o Ministério Público precisa ir para as ruas, sair do gabinete e conhecer a realidade e as dificuldades para continuar como garantidor dos direitos.
Ao longo do tempo, Nunes argumenta ter visto mudanças no olhar da população sobre a política e o Judiciário, mas que uma visão não mudou: a sociedade vê o MP como órgão de confiança. “O Ministério Público sempre ganhou no tempo e espaço contribuição de seus integrantes, sempre teve gente muito valiosa, não só na parte intelectual, mas especialmente tendo trabalho de muita decência.”

Marcelo Nunes e o Diário

Natural de Marília, no Interior de São Paulo, Marcelo Nunes, 54, cursou a Fundação de Ensino, em sua cidade natal, e ingressou no Ministério Público em 1989, pensando em ficar longe da Capital. Mas tudo mudou em 1994, quando, à espera de elevação de funções na instituição, veio para Santo André, para nunca mais sair. Foi neste momento que conheceu o Diário, que foi fundamental para que o ‘caipira’, como ele mesmo se denomina, tivesse contato com o efervescente Grande ABC. Ao longo dos anos, o jornal ajudou Nunes a iniciar trabalho que resultou nas principais ações dele a favor da sociedade local.


Como foi seu primeiro contato com o Diário?

Eu, quando cheguei em Santo André, tive contato com o jornal. Era 1994. Estou em Santo André desde junho de 1994, uma experiência de 24 anos aqui. Logo que cheguei tive contato natural com a sociedade e uma das balizas que me fortificaram e trouxeram informes da cidade foi o Diário. Serve de parâmetro para entender a cidade. Precisava me alocar então como novo morador de Santo André e precisava ter visão global e interessada da cidade. O Diário, em especial, sempre foi dinamizado na proposta de trazer em um caderno superinteressante que fala da cidade os fatos importantes. Confesso que a imprensa, em especial o Diário, sempre forneceu elementos importantes para a Promotoria de Justiça trabalhar. É um auxílio fático, uma exposição responsável das matérias do dia a dia e que tornam mais fácil a experiência de iniciar, de promover e verificar um fato que interessa à sociedade. A proposta do promotor de Justiça é trabalhar a favor da sociedade, é seu perfil constitucional. Existe o Ministério Público para guardar, zelar e intensificar os direitos fundamentais da sociedade.

Um dos grandes casos que o sr. atuou foi no fechamento de bingos em Santo André, no fim dos anos 1990 e começo dos anos 2000. Como foi atuar naquele trabalho?
Trabalhei especificamente nesta estruturação, ajudando minha colega do Gaeco (Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado) a solidificar uma ação civil pública que permeou e induziu essa especificidade para o tratamento do jogo de bingo. O jogo tem influência extremamente funesta e negativa na sociedade, tem até CID, um código internacional especificado, como doença que se revela, que se instala e se complica à medida do tempo para quem joga. Não é só nota exclusivamente de proibição pura e simples. Há, por trás de tudo isso, que é subjetiva e que é a questão de saúde pública. É uma das pastas que eu tenho hoje, tenho Saúde, Patrimônio Público, Cidadania e a Inclusão Social como notas fundamentais do meu gabinete. Entre elas, especificamente porque é proposta de plano de atuação do procurador-geral de Justiça, tem a Saúde pública, que vem permeando um interesse especial do gabinete.

Há quase 25 anos no Grande ABC, quais transformações que mais chamaram atenção do sr. na nossa região?
O novo sempre vem. Esse acontecimento natural das coisas traz boas e más impressões na medida do tempo. A modernização traz um acompanhamento econômico consequentemente. O Brasil é um país capitalista e tem suas atividades primárias e secundárias. Através do tempo a gente vê que os contratos, as gestões de negócios que permeiam os interesses fundamentais têm adaptações. No próprio campo do consumidor, uma área em que atuei por quase dez anos e tive atuação efetiva, a evolução foi constante.

O Ministério Público também mudou?
O Ministério Público tem de se reestruturar, não só no campo cível ou criminal, mas principalmente no campo político. O Ministério Público precisa ser indutor de política pública, sair do gabinete, visitar estruturas administrativas que dão, em tese, apoio aos direitos fundamentais e se entrevistar com os gestores administrativos, como secretários municipais, os agentes que fazem os contornos sociais. Recebê-los também para entender as dificuldades de uma administração. E não ficar somente esperando a denúncia chegar. Vá, visite, conheça. Saiba das dificuldades. Não se pode entender o Ministério Público hoje tão voltado exclusivamente a ações judiciais, porque isso, na realidade, engessa. É trabalho que engessa. O Ministério Público não pode ser engessado. Mas o Ministério Público sempre teve uma história muito valiosa pela dignidade de seus integrantes. O Ministério Público sempre ganhou no tempo e no espaço contribuição de seus integrantes, sempre teve gente muito valiosa, não só na parte intelectual, gerindo posições, ganhando posições, mas especialmente tendo trabalho de muita decência. O Ministério Público sempre foi um órgão extremamente honesto. Por isso que, na medida do tempo, ganhou posição de fazer enfrentamento de questões especiais que traduzem a necessidade de confiança da sociedade.

Manter essa confiança passa por sair do gabinete?
É. Em especial para ter vida social dinâmica e sem se envolver com as questões que lhe afetam diretamente. Por isso tem essa seriedade de poder definir exclusivamente dentro da legalidade.

Há alguns anos o Ministério Público lançou a cartilha Político que Faz Favor, Nega Direitos – em Defesa do Político Ético e da Sociedade, que busca defender o fim do ‘jeitinho’. Essa é uma prática ainda recorrente?
A ideia da cartilha é mesmo chegar à população. O cidadão tem de se conscientizar do valor que ele empresta a cada lugar que ele se inclua. Seja no trabalho, em projetos pessoais. Ele precisa entender o valor que ele tem. A consciência do Ministério Público é valorizar o cidadão e fazer com que ele entenda determinados aspectos políticos. Hoje o cidadão está mais politizado. Todo mundo empresta uma posição pessoal à política nacional, algo que não ocorria. É importantíssimo. É uma das coisas que o tempo trouxe como valorização do status societat, e emprestou naturalmente. Essa cartilha traz mensagem importantíssima para o cidadão se conscientizar. O slogan da cartilha é ‘político que faz favor nega direitos’. Precisamos evitar aquela consciência antiga de pedir ao político favores dentro do meio social. Toda vez que cria ambiente favorável para alguém fora das condições da lei, ele traz prejuízo de alguma forma. À medida que o político gera esse favor para se beneficiar, ele cria dificuldades de outro lado.

Como é a relação do MP com a classe política?
Eu, felizmente, por ter essa história de Ministério Público de muita dignidade e retidão, nunca tive problema de falar com o político no gabinete. Ao contrário. Todos que vêm estão interessados em cumprir nota de legalidade. Se não for assim eu nem converso com a pessoa. Eu exponho no primeiro momento que o Ministério Público não tem partido. O Ministério Público atende todos os partidos dentro da legalidade. Eu sempre tive aqui postura espontânea dos políticos no sentido de estabelecer relação de legalidade. O interessante disso tudo é que o político vem ao gabinete se informar se aquilo que pretende fazer é legal ou não.

O sr. conduziu diversos procedimentos que impactaram no Grande ABC como um todo, como a revitalização do Parque Guaraciaba, a redução de cargos comissionados na Prefeitura e na Câmara de Santo André. E teve destaque a atuação para melhorar a distribuição de medicamentos de alto custo na farmácia do Hospital Estadual Mário Covas. Como anda o trabalho?
Basta visitar a farmácia e o hospital para entender que alguma coisa está errada. O Diário foi especialmente valoroso nesta questão. Existia necessidade de buscar estruturação, um redimensionamento do trabalho de distribuição dos remédios de alto custo. Você chega lá e acompanha uma triste realidade, que foi constatada pelo Diário em diversas reportagens. São vários anos que o Diário acompanha e venho recolhendo no meu inquérito civil todo esse material, com várias vítimas. O Hospital Mário Covas é estadual, recebe recursos do Estado, depende do governo do Estado. Isso é uma disposição que afasta um pouco as realizações práticas do prefeito. Os prefeitos do Consórcio Intermunicipal sempre idealizaram melhorar, sempre tiveram boa vontade, mas na hora de efetivar há um entrave, porque o Estado não quer receber de um representante municipal uma ordem. E é aí que vem o Ministério Público, como indutor de política e executor de tutela de direitos fundamentais, criar momento diferenciado para a população. O próprio Estado se defendeu dizendo que existe projeto. Isso sempre existiu e a realidade segue a mesma, há vários anos, e muitas vezes piora a situação. E não vemos realização efetiva de distribuição mais interessada e dinamizada de remédios. O que a gente vê é o idoso na fila por oito horas, normalmente já está debilitado por condição de saúde.

Qual a sua posição a respeito do foro privilegiado?
O foro privilegiado é fundamental que exista, mas limitado com o que a própria lei diz. Temos de evitar o populismo. O Supremo Tribunal Federal e os demais tribunais vão funcionar porque sempre funcionaram. Assim deve acreditar a população. O populismo invade seara, cria constrangimento, até para o próprio STF poder agir. Sou ferrenhamente contra o populismo. Mas sou positivo no sentido de acreditar que as instituições vão funcionar. Eu apoio muito o Supremo na decisão colegiada. Só que esse enfrentamento da questão é muito singelo. Tem de existir o foro privilegiado com os limites que a Constituição e a lei já impõem. Até porque aquele que trabalha com questões públicas precisa ter mais condições de debater as questões públicas, por isso a necessidade do foro.

Mas há ministros do Supremo que falam em extinguir completamente o foro. Há quem jogue na conta do foro a morosidade da Justiça brasileira...
Acho que o Supremo precisa melhor gerir a agenda de processos de julgamento. Precisamos discutir se é possível condenar em segunda instância, se é regular. Isso decorre da falta de pauta do Supremo. Se o Supremo tivesse gerido a pauta dele, não haveria necessidade de se falar em prisão em segunda instância. Não temos como interpretar um texto constitucional que fala em decisão de superior instância para trânsito em julgado e defender que qualquer coisa fora disso não atinge a presunção de inocência. Queremos justificar coisas que não são justificáveis.

A prisão após condenação em segunda instância ultrapassa os limites constitucionais?
Não tenha dúvida. Pode criar ambiente e justificar (a prisão em segunda instância), até por força de agradar o povo, o populismo que digo. Temos de enfrentar as coisas de maneira mais simples. O texto constitucional é claro: a presunção de inocência tem de ser defendida a qualquer custo.

Outro debate que envolve o judiciário é o auxílio moradia. O sr. também acredita que esse populismo inverte a discussão?
O populismo também implicou neste debate, implica em solução funesta, de descrédito dos magistrados. Acho que existe trato legal, existe previsão legal, conforto constitucional do trato da matéria, mas precisa ser melhor gerido, intimamente ligado dentro da organização judicial. Não tem de vazar. O povo não pode dizer sobre aquilo que não conhece. Precisa conhecer, estruturar condição de opinião. Existe trato legal e constitucional, não é ilegal. Tem previsão legal.

O que esperar do Diário e do Grande ABC para o futuro?
Do Grande ABC espero que se reinvente politicamente e que crie momentos importantes para a sociedade. Para o Diário, espero a responsabilidade de notícia independente, veiculação criteriosa, algo que sempre teve. 




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