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AD São Bernardo: o ‘catado’ que deu certo no futsal

Jogadores dividem atividades profissionais com partidas e treinos pela equipe, que decide hoje vaga na semifinal da Liga Paulista

Dérek Bittencourt
19/11/2021 | 00:01
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André Henriques/DGABC


Acordar cedo, se arrumar, tomar o café da manhã, se dirigir à empresa ou ao local de trabalho, desempenhar sua função durante todo o dia e sair apressado rumo ao Ginásio Poliesportivo para treinar, jogar ou pegar um ônibus para alguma cidade do Interior defender a camisa da AD São Bernardo. Esta é a realidade da maior parte do elenco do time do Grande ABC, que disputa hoje o segundo jogo das quartas de final da Liga Paulista, a partir das 19h30, contra o Pulo/Campinas, na casa do adversário. Entre os jogadores, há metalúrgicos, mecânico, motorista de aplicativo, professores, dono de barbearia, jogadores de futebol de campo e outros. Em comum, a paixão pelo futsal. Por isso, se dividem entre os empregos, que garantem a eles a fonte de renda, e o time, que não tem condições de oferecer remuneração, mas permite a eles realizarem os sonhos de jogar profissionalmente. E apesar dessas condições, com muita dedicação a equipe passou da primeira fase, avançou das oitavas de final e tenta hoje chegar à semifinal da competição – para isso, precisa vencer no tempo normal e na prorrogação.

“Nosso time está se dedicando, se propondo a estar comprometido em quadra e isso fez muita diferença. Lógico, a gente sabia das dificuldades. Ninguém do nosso time é profissional. Somos um catado com um bom treinador, que conseguiu passar as informações, nós acatamos e as coisas acabaram acontecendo. Fizemos boas partidas, jogamos contra time de Liga Nacional, como o próprio Magnus”, avalia o goleiro são-bernardense Marcel Martins, 38 anos, que durante o dia é professor de educação física do Colégio Arbos.

Na juventude, o arqueiro jogou em equipes como São Caetano, Basf/Mauá e no próprio São Bernardo. Chegou a receber propostas de fora do País, mas decidiu se dedicar à função de educador. “Nunca fui pela ilusão, então nunca caí na tentação do sonho (de jogar fora do País). Em 2009 parei, desisti de jogar. Só no ‘extra’ (várzea), junto com o (assistente técnico Felipe) Piovesan, que comentou sobre a volta do time. Por conta da pandemia minha carga horária foi reduzida e me coloquei à disposição. Sabia que era projeto praticamente amador, mas gosto demais disso, sou amante do esporte, trabalho com educação física mas também treinamento, então está no sangue. Quando fez a proposta, sabia das condições, mas de certa forma me senti bem por ajudar São Bernardo, por voltar a jogar, a cuidar da saúde”, contou Marcel, que se divide entre o colégio e a quadra. “Se estivesse com a carga horária cheia, provavelmente não conseguiria dar conta”, admitiu ele, que acabou perdendo um jogo em razão da atividade principal. “A São José (dos Campos) não consegui ir porque caiu em dia que trabalhava e não deu para sair. As demais (viagens) procurei conversar, passei a tabela e verifiquei a disponibilidade de liberarem, porque não queria que atrapalhasse meu ganha-pão. Então a escola foi muito bacana comigo, em duas situações me liberaram para viajar e representar a equipe. Mas é uma faca de dois gumes, não sabe se pede e coloca a cabeça em risco ou não. Mas não posso reclamar, a escola foi muito bacana comigo.”

Motorista de aplicativo, Roberto Silvio Salles Júnior, 29, mais conhecido como Gevu, fez base em times como Banespa e Associação, migrou para o campo, onde defendeu São Caetano e um clube de Portugal, mas depois regressou ao salão apenas para jogar no extra, onde justamente a porta do AD São Bernardo se abriu para ele, que aproveita sua primeira oportunidade como profissional.

“O que mais gosto de fazer é jogar. Então intercalo o trabalho como motorista e os treinos. Mulher até briga comigo, porque quer que trabalhe e aqui não ganho nada, mas serve de vitrine e tento fazer o melhor possível para conseguir algo melhor”, contou o jogador, que chega a abrir mão das corridas remuneradas para vestir a camisa dentro e fora de casa – inclusive viajando para cidades como Dracena, Ribeirão Preto e Araraquara. “A conta não fecha. Chegamos de Araraquara às 3h e acordei às 6h para trabalhar. A vida é assim. Estamos aqui, mas o importante é lá como motorista de aplicativo, que é o ganha-pão.”

EMPRESÁRIO
Morador de São Caetano, o pivô Bruno Lopez tem história e fontes de renda diferentes dos colegas. Há oito anos, ele defendeu a equipe de futsal são-bernardense na Liga Nacional e, posteriormente, foi jogar no Exterior. Passou anos fora do Brasil (atuou no campo na terceira e quarta divisões da Alemanha) e investiu o dinheiro que ganhou em casas e em uma barbearia. Regressou ao Brasil, passou pelo EC São Bernardo e recebeu o convite da AD São Bernardo para vestir novamente a camisa. Aceitou. Assim, pela manhã se dedica à família, durante a tarde administra os negócios e à noite se dirige ao Poliesportivo para treinar e jogar. Ao menos era sua rotina antes de romper o tendão do calcanhar direito.

“É um hobby, mas não é o futsal que traz sustento para todos. Consegui investir e minha fonte de renda principal são aluguéis de algumas casinhas (em São Caetano) e a barbearia (no Rudge Ramos, em São Bernardo). Mas, particularmente, não sei cortar um cabelo. Minha ideia era recuperar fisicamente para ano que vem retornar para a Alemanha. Agora, com a lesão, vou adiar um pouco”, projetou ele, que voltará para o campo. “É onde dá dinheiro.”

Artilheiro do campeonato é metalúrgico durante o dia

Com 16 gols marcados pela AD São Bernardo até aqui, o camisa 10 Mazinho é, isoladamente, o artilheiro da Liga Paulista. No entanto, desde as primeiras horas da manhã até o fim da tarde, ele é Gildemar Nascimento dos Santos, 30 anos, metalúrgico da ACZ Inox, em Diadema, onde trabalha ao lado de outro colega de time, Willian Tadeu, que atualmente está lesionado. É da metalúrgica que vem o dinheiro para seu sustento, mas a satisfação pessoal vem mesmo quando calça tênis, meiões, veste o shorts e coloca a camisa aurinegra.

“Estou muito feliz. Nunca esperava fazer tantos gols numa Liga tendo que trabalhar de manhã e treinando à noite. Não é fácil, porque é muito cansativo”, admitiu ele, que conta com o respaldo da empresa para conseguir ir nas viagens do time. “Agradeço a ela, porque, quando precisei sair cedo para jogar, me liberaram”, destacou ele, que conta com o apoio dos colegas. “Chego na firma e todos me dão parabéns. Isso me deixa sem palavras.”

A fábrica, inclusive, já teve entre os funcionários dois atletas do Santo André Futsal, casos de Xaropinho e Mancine, destaques do time andreense. Aliás, Mazinho contou que tentou ser colega de time da dupla. “Fiz uma avaliação no Santo André, mas não passei. Fiquei sabendo que o São Bernardo voltaria a jogar a Liga. O (assistente técnico Felipe) Piovesan me ligou perguntando se eu tinha interesse de jogar e respondi ‘claro’, porque realizaria um sonho de ser profissional desde moleque, mas nunca tive chance”, recordou.

Autor do único gol do São Bernardo na derrota por 5 a 1 no jogo de ida contra o Pulo/Campinas, Mazinho ainda acredita ser possível avançar à semifinal. “Vamos fazer de tudo para trazer a classificação. E fazer história no Bernô.”

Mecânico exalta ambiente e recorda críticas ao time

Alexandre dos Santos, 30 anos, é mecânico e, junto aos irmãos, pai e mãe, tem duas unidades da Mecânica Pais e Filhos, em São Bernardo. Acostumado aos jogos na várzea, em 2020 viu a AD São Bernardo contar com alguns amigos no time e passou a pensar no quanto gostaria de viver aquela realidade. Coincidência ou por força do destino, recebeu uma mensagem no Instagram do assistente técnico Felipe Piovesan o convidando para defender o time. Não pensou duas vezes e, mesmo com toda a demanda pesada em meios ao conserto dos carros, aceitou o desafio.

“Tem dia que venho treinar muito cansado, porque tenho duas unidades com meus irmãos, pai e mãe. Abrimos às 8h e fechamos às 18h e o treino começa às 19h. Venho correndo, muito cansado, mas faço o máximo para não faltar aos treinos”, contou Alê que, quando o time viaja, precisa dar conta do serviço antes de pegar a estrada. “Quando tem jogo fora, passo um pouco do horário na oficina para adiantar o trabalho. Vou dormir cansado, no outro dia viajo, jogo, então é bem desgastante. Mas não só eu que tenho esse desgaste, como os companheiros, mas com todo esse esforço a gente vem conseguindo alcançar grandes resultados.”

De acordo com ele, o sucesso do time tem motivo: o ambiente. Inclusive, Alê rebateu aqueles que caçoaram da equipe anteriormente. “Uma das coisas mais importantes desse grupo é o clima, que é sensacional. Independentemente de quem entra na quadra e quanto tempo, a união é muito grande. Esse ‘catado’, como todo mundo chama, está dando certo. Estamos muito felizes. Recebemos muitas críticas, teve gente que falou ‘vocês têm jogador de campo, são loucos, não vão arrumar nada’, mas olha a situação que estamos (quartas de final). Conseguimos dar a resposta às críticas da melhor forma possível”, bradou.

“Quem está de fora pensa que é fácil, mas não é. A gente escuta muito ‘vocês não ganham nada’, mas não temos isso na cabeça. O mais importante aqui é a união. Ninguém está aqui por causa de dinheiro. Escutamos muito que não tinha esse clima que tem hoje. Com esse ‘catado’ conseguimos trazer tudo isso”, concluiu Alê, que deixou de jogar no extra para se dedicar ao time e não correr risco de lesão. 




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