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Gosto se discute
Ricardo Ditchun
Do Diário do Grande ABC
29/01/2006 | 09:57
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Sim, gosto se discute. E até em nível acadêmico. O advérbio de inclusão até é justificado pelo fato de este ser um tema de domínio popular desde sempre. Mas o francês (de Bordeaux) Montesquieu (1689-1755) quis – e conseguiu – incluir o assunto na Encyclopédie, a obra máxima do Iluminismo projetada por D’Alembert e Diderot e publicada em 1757. Estes queriam que o autor de O Espírito das Leis, texto fundamental para a filosofia política, escrevesse um verbete a respeito de Democracia e Despotismo, assuntos correlatos, diga-se. Mas Montesquieu já havia dito tudo o que achava que tinha a dizer a esse respeito, não só em O Espírito, mas em Cartas Persas e A Política.

Interessava-lhe, então, construir um ensaio sobre o gosto, com pontos essenciais dos modos pelos quais uma composição artística passou a ser organizada desde a Renascença. Em outras palavras, Montesquieu buscava explicitar o entendimento dos meios que fazem o espírito retirar prazer daquilo que vê. Trata-se, portanto, de uma investigação sobre a sensibilidade, sobre o prazer e, em última análise, a respeito da felicidade. Da consciência da felicidade, mais precisamente.

Meios para estimular, preservar e não perder de vista o prazer. Prazer? Felicidade? Gosto? Estranhas essas preocupações hoje, tempos em que causa sentimento de culpa a simples intenção de desvio das diretrizes da ideologia do trabalho, dos preceitos religiosos, das atitudes corretas, da resistência, da luta... Enfim, como pleitear o gosto quando a felicidade é expurgada da academia, da política e até mesmo da arte? Tudo em nome do saber e da moral, do bem-estar e da qualidade de vida, do interesse social e coletivo. Mal-estar da civilização, diria Freud.

Não menos estranha, então, é a presença do verbete o gosto no baluarte iluminista, a tal Encyclopédie. Mas ele está lá. Um fragmento imparfait (inacabado), como ressaltaram D’Alembert e Diderot, em 1757. O motivo? A morte de Montesquieu enquanto o texto ainda estava em andamento.

O Gosto (Iluminuras, 128 págs, R$ 33), agora, chega ao idioma português por meio de um cuidadoso e louvável trabalho de tradução realizado por José Teixeira Coelho Netto, professor de Política Cultural da ECA-USP (Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo). É dele também o precioso posfácio “Esboços do prazer (ensaiando imperfeições)”, um texto complementar, em termos de elucidação de algumas chaves do pensamento de Montesquieu, e instigante, quando se exercita a arte de ler os ensinamentos do pensador francês tendo em conta os dias que correm, e com eles programas artísticos, filosofias da educação, políticas culturais.

Diz Teixeira Coelho: “As épocas posteriores a Montesquieu, a modernidade inicial e depois a plena, herdeiras do iluminismo, tenderam a esquecer-se, no campo da reflexão embora não no da prática da arte, do componente sensível, do gosto e da sensibilidade, por ele (Montesquieu) postos em destaque, e apostaram tudo no componente intelectual (conteúdo) ou, pelo contrário, no mais baixo, no mais inferior, no mais mecanicamente afetual, numa operação da qual a resultante tem sido uma sensibilidade deficiente, desequilibrada, capenga e, no limite, inexistente.” Satisfeito, e incomodado, com a argumentação de Teixeira Coelho? A solução pode estar na livraria mais próxima, nas páginas de Montesquieu, por módicos R$ 33.

trecho

“O que torna notável uma beleza é quando uma coisa é tal que a surpresa por ela provocada é de início medíocre mas em seguida se sustenta, aumenta e nos leva à admiração. As obras de Rafael não despertam de início muita atenção: ele imita tão bem a natureza que a princípio a surpresa não é maior do que se estivéssemos diante do próprio objeto representado e que em si não causaria nenhuma surpresa. Mas uma expressão extraordinária, um colorido mais forte, uma cena bizarra num pintor não tão bom nos chama a atenção de imediato por não estarmos acostumados a ver a mesma coisa em outra situação. É possível comparar Rafael a Virgílio e os pintores de Veneza a Lucano, Virgílio, mais natural, de início surpreende menos, para em seguida surpreender mais; Lucano de início surpreende mais, para em seguida surpreender menos.

As proporções exatas da famosa igreja de São Pedro faz com que de início ela não pareça tão grande quanto de fato é, pois a princípio não sabemos em que nos basearmos para avaliar sua grandiosidade. Se ela fosse menos larga, ficaríamos surpresos por sua largura; se fosse menos comprida, nos surpreenderíamos por seu comprimindo. Mas, à medida que a analisamos, o olho a vê crescer, e o espanto aumenta. Pode-se compará-la aos Pirineus, onde o olho, que de início pensa poder avaliá-los, descobre outras montanhas atrás da primeira e se perde cada vez mais.

Acontece com freqüência que a alma sinta prazer quando experimenta um sentimento que não consegue compreender e quando vê algo absolutamente diferente do que conhece, o que lhe dá uma sensação de surpresa da qual não se desvencilha. Um exemplo: o domo de São Pedro é imenso; sabe-se que Michelangelo, vendo o Panteão, que era o maior templo de Roma, disse que queria fazer algo igual mas nas alturas. E então fez, com base nesse modelo, o domo de São Pedro; que é como uma montanha sobre nossas cabeças, parece leve ao olhar. Com isso, a alma fica na dúvida entre o que vê e o que sabe que é e se surpreende ao ver uma massa ao mesmo tempo tão grande e tão leve.”




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