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Sou do tempo em que...
Por Rodolfo de Souza
29/03/2018 | 07:00
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Sou do tempo em que Adoniram era vivo e cantava São Paulo como ninguém. 

Sou do tempo em que Elis lotava o teatro por um ano inteiro e ainda promovia reestreia com casa cheia no ano seguinte.

Sou do tempo em que Toquinho fazia parceria com Vinicius para, juntos, cantarem o amor e as coisas da Bahia.

Sou do tempo em que Tom exaltava a figura da garota de uma Ipanema que não conhecia os dissabores cariocas dos dias atuais. Tempo em que Chico compunha, cheio de mágoa, suas canções do exílio; dias em que a gasolina era barata e se usava pedir bênção aos pais, licença e dizer obrigado; tempo em que professor gozava ainda de algum prestígio e colhia tímidos gestos de respeito aqui e ali.

Sou do tempo em que os Beatles cantavam juntos e seu público nem desconfiava de que logo o sonho se acabaria. Época de encantamento das jovens tardes de domingo; dias em que Janis Joplin e Jimi Hendrix dividiam os palcos do rock e levavam a plateia ao delírio.

Sou do tempo em que Tonico e Tinoco cantavam moda sertaneja de verdade, e Arrelia com seu companheiro Pimentinha faziam rir nas tardes de domingo. Magia que deixava eufórica a gente que se aglomerava em frente à TV preto e branco de algum vizinho ou parente mais abastado, que desfrutava do privilégio ímpar de possuir uma. 

Sou do tempo em que o homem branco pisou altivo no solo lunar, fez pose para foto e hasteou bandeira que não tremulou, só ficou lá, quieta.

Sou do tempo em que a Copa do Mundo despertava alguma seriedade e levava multidões a acreditar na força do futebol brasileiro. Tempo legal em que o vinil chiava na vitrola, e se comia arroz com feijão no almoço e no jantar. Macarrão, só no domingo.

Sou do tempo em que John Lenon cantava a paz e caminhava tranquilo pelas insuspeitadas ruas de Nova York. 

Sou do tempo em que uma tal Guerra Fria assombrava por causa da coceira no dedo de alguém que andava mesmo propenso a apertar o botão, que, afinal, nunca apertou.

Sou do tempo em que a censura proibia qualquer manifestação de repúdio ou simples descontentamento pelo modo de se governar o País, o Estado, o município, o bairro, a comunidade... E descia o reio no incauto que se aventurasse a subverter a ordem.

Sou do tempo em que Drummond ainda era colunista de jornal; do tempo em que o carburador vivia desregulado e a marcha, lenta demais, obrigava o motorista a pisar com a ponta do pé no freio e cutucar com o calcanhar o acelerador para que o motor se mantivesse funcionando no semáforo vermelho.

Sou do tempo em que moleque andava descalço pelo campinho, templo da liberdade em que se corria, brincava e se deleitava com o estilingue, arma imprescindível nas guerras de mamona, que deixavam marcas que os heróis exibiam com orgulho.

Não havia controle remoto no meu tempo e, por vezes, assistíamos a um programa ruim só para não levantar e trocar de canal a velha TV, aparelho que, aliás, evoluiu muito, em contrapartida aos programas, que continuam ruins.

Sou do tempo em que telefone era luxo para poucas famílias, nostalgia que remete à ligação interurbana que podia levar o dia todo para a telefonista conseguir completar. Completar, inclusive, era a expressão utilizada, porque falar a distância era difícil, tão difícil quanto datilografar, de forma impecável, um texto em duas vias. Sou mesmo do tempo em que computador era coisa vista só em filme de ficção científica.

Sou do tempo em que políticos roubavam e o esquema era assunto que não dizia respeito ao povo. Gente feliz aquela, que desconhecia a essência do mal e sorria. 

É... Foi-se o tempo em que eu reparava no jeitão simples das pessoas antigas que começavam as frases dizendo: ‘Sou do tempo em que...’.




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