Dois séculos antes de Cristo, como aproveitamento dos descartes dos peixes abundantes nas suas costas, particularmente as anchovas e as sardinhas, os gregos inventaram um tipo de condimento, apelidado de Garos. Utilizavam as vísceras de tais pescados, toques de vinho avinagrado e as especiarias à sua disposição. Logo os romanos se interessaram pelo resultado.

Um certo mago da gastronomia daqueles tempos, Marcus Gavius Apicius, decidiu aprimorar o Garos – que, nas suas mãos santas, se transformou em um molho de múltiplas aplicações, o Garum, ou Liquamen. Problema radical: naqueles idos, claro, não existiam geladeiras. Assim, depois de algum período ao relento, o Garum se fermentava – e, literalmente, fedia.

Como o seu gosto, porém, continuasse a fascinar os cozinheiros e os gourmets daquela época, as suas fabricazinhas se instalaram nos arredores das cidades. Caso de Pompéia, ao lado de Nápoles, conforme descobriram, recentemente, os arqueólogos investigadores das suas ruínas, soterradas por uma impiedosa erupção do vulcão Vesúvio, em 79 d.C.

No correr das décadas, ainda em tempos imemoriais, algum outro sábio, que ficou anônimo, desistiu das vísceras e passou a conservar os filezinhos das anchovas em mera salmoura. Funcionou, sensacionalmente.

Sempre nas costas de Nápoles, e na direção da ilha da Sicília, para o sul, comunidades inteirinhas passaram a se dedicar à produção de alice, no singular, ou de alici, no plural. Recorriam exclusivamente às anchovas, e aos peixes menores, ainda em fase de crescimento, de no máximo 15 cm de comprimento – as adultas podem atingir os 50 cm. Aliás, desenvolveram uma tecnologia admirável de limpeza e de conservação – além da salmoura, também o azeite e o alho.

Presente - Atualmente, existem anchovas no Mediterrâneo e no Atlântico, embora a poluição e a captura predatória já ameacem a sua espécie. Mais prejudica, no entanto, a tentativa de substituir o original pelo seus sucedâneos imperfeitos, caso das sardinhas anchovadas que, nem de longe, se assemelham às relíquias autênticas.

Claro, por isso são muito mais caras as alici de verdade, que eu costumo adquirir, a granel, preservadas em sal grosso, no Mercado Central da Cantareira, no Centro Velho de São Paulo – e daí higienizo, meticulosamente, na pia da minha cozinha doméstica.

Pizzas à parte, com alici eu perpetro um sensacional sanduíche em pão italiano; uma pasta opulenta, com salsinha bem picadinha, a alicella; outra maravilha peninsular, com pimenta e pimentão, a sardella; e uma dezena de pratos majestosos com vários tipos de macarrão.

Neste domingo, explico de que maneira, de forma bem paciente, eu elimino as escamas e as espinhas das anchovetas verdadeiras lá do Mercado. Trato de diferentes usos para o produto. Revelo, enfim, a alquimia da sardella que eu aprendi com a minha nonna Francesca. E desvendo o mistério de uma receita bem simples, mas fenomenal, que aprendi, na Sicília, com Lindy Regazzoni.

Receitas

Sardella à Lancellotti
Ingredientes, para meio quilo: 300g de pimentões vermelhos, cozidos, sem as peles, sem as sementes, e sem os brancos internos. 150g de filezinhos de alici. 50ml de azeite de olivas. Pimenta calabresa, em pó, a gosto.

Modo de fazer: Num processador, lentamente, para que o resultado não fique espumoso, trituro os pimentões. Num pilão, ou o equivalente, combino os pimentões, os filezinhos de alici, o azeite e a pimenta. Esmago muito bem, até obter uma pasta bem homogênea e sem qualquer grumo.

Observação: Passa-se a sardella, com ou sem manteiga, às vezes com um pingo mais de azeite, no pão italiano, fresco ou tostado. Com relação ao teor da pimenta calabresa, você decide. Eu gosto da sardella picante.

Tortiglioni alla Regazzoni
Ingredientes, para uma pessoa: Azeite de olivas. 4 dentes de alho, em lâminas bem fininhas. 4 filezinhos de alici. 150g de macarrão parafuso, ou tortioglioni, cozido al dente. Mais 4 filezinhos de alici, para a cobertura.

Modo de fazer: Numa frigideira, sobre um fundo de azeite, murcho as lâminas de alho. Em fogo bem suave, nesse mesmo conjunto, desmancho completamente quatro filezinhos de alici. Despejo a massa, al dente, dentro da frigideira. Misturo e remisturo. No prato, coloco os filezinhos restantes.

Observação: O prato não pode levar queijo parmesão.

Curiosidades

A higienização das alici
Dá trabalho. Mas, o esforço e a economia compensam. Compro as tais anchovas em sal grosso, uns 15 cm de comprimento, apenas sem as suas vísceras. Na pia da cozinha, num fio de água, delicadamente, com as pontas dos dedos, elimino as suas escamas. No mesmo fio, dirigido no rumo da barriga, cautelosamente abro cada uma das unidades. Sem que a carne dos filés se machuque, extraio a coluna vertebral e retiro o que restar das espinhas. Separo os filezinhos. Seco, num pano ou num papel absorvente. Assim que termino a operação, monto os filezinhos, em camadas, muito bem untadas com azeite extra-virgem, numa terrina de tamanho apropriado. Levo à geladeira.

As alici, no Worcestershire
Quem desfruta o verdadeiro molho inglês Worcestershire, cuja base um certo Sir Marcus Sandys, governador de Bengala, na Índia, conheceu na Ásia em 1830, não imagina que, na sua fórmula, as alici são protagonistas cruciais. De volta à Grã-Bretanha, incapaz de resgatar a essência que adorava, Sandyz recorreu aos seus amigos apotecários da empresa Lea & Perrins, explicou-lhes de que se tratava, descreveu-lhes os ingredientes que pressupunha – e, então, na tentativa e no erro, em 1837, aprovou a composição. Além de vinagre de malte de cevada, melaço, alho, cebolinhas verdes, tamarindo, cravo, e mais um punhado de segredos, o verdadeiro Worcestershire leva pasta de alici.