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O escriba de coisas graúdas
Por Rodolfo de Souza
22/08/2021 | 00:01
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Sou o escriba de coisas miúdas – dizia Machado de Assis. Causa-me, pois, certa inquietação, enquanto cronista, as poucas vezes em que também fui um escriba de coisas miúdas. Fato é que acontecimentos graúdos me impedem de dar a devida atenção aos retratos cotidianos, pitorescas imagens que fornecem a matéria-prima para um sem-fim de saborosas narrativas. Não obstante o universo de quadros miúdos a ser fartamente explorado, detenho-me, pois, em questões que, de forma alguma, podem ser deixadas de lado. 

O relatório para o clima, aquele que a ONU (Organização das Nações Unidas) expediu e tornou público noutro dia, é um exemplo: as previsões catastróficas com relação ao aumento de temperatura no planeta fazem perder o sono, sobretudo por se saber que a vontade política nenhuma para se resolver o problema é pedra no caminho da salvação. Em especial, no que diz respeito a uma enorme república que dorme em berço esplêndido logo abaixo da linha do Equador. Aquela que ainda é dona da maior floresta do mundo, embora já seja possível assistir, via satélite, ao seu definhar, sem que nenhuma providência seja tomada para se deter o apetite voraz da motosserra e da bateia. Contrário a isso, o que se vê é o estímulo à sua devastação, bem debaixo de Sol a pino. A poética calada da noite, afinal, perdeu a sua utilidade para questões escusas aqui em solo varonil.

Mesmo assim, milhões é a cifra empregada para a gente desta mesma pátria, que não se importa com a floresta e com o clima, simplesmente porque a fome não lhes permite ter um pensamento voltado para qualquer assunto que não seja a tragédia pessoal, oriunda do desemprego, do desamparo, da falta de perspectiva... Um teto que lhes dê abrigo, isso é luxo sobre o qual nem lhes cabe pensar. É o flagelo da miséria dentro do País que mais produz alimentos neste mundão de meu Deus. Mas a dignidade, que há muito se foi, torna opaca esta visão de riqueza, fomentando nas mentes a crença de que vivemos num País pobre. Mesmo que a consciência dos fatos determine empobrecido como termo que melhor representa a situação.

Logo, o aquecimento global, a volta do Talibã e a variante delta tornam-se questões irrelevantes para quem necessita batalhar o pão bolorento, todo santo dia. Para si e para os seus. Os olhos se voltam, neste momento, para a tragédia que assola a nação distante e se comovem. Mas à tragédia nacional é conferido um ar de normalidade, assim como acontecerá com o dia a dia sangrento daquela gente, logo mais.

A peste, por sua vez, continua se fartando da ignorância crônica para fazer morada no peito dos incautos. O bicho é tinhoso, e fez muitas cópias de si mesmo só para enganar o sistema imunológico, e, de olho na falta de vacinas, ainda promete que fará outras mais. Sempre com a colaboração desse povo que curte sobremaneira negar a presença do mal. 

Parece, amigo leitor, que a perplexidade, rotina dos dias atuais, já começa a apreciar o seu fim, o que me leva a concluir que ter vivido em época remota, em que tudo era mais calmo, quieto e simples tenha sido mesmo um privilégio. Por esta razão que autores daquele tempo se davam ao luxo de escrever crônicas que falavam de coisas miúdas. Mesmo porque, a sofisticação ainda estava longe de aperfeiçoar a crueldade humana. 

Inveja danada é o que bate.


Rodolfo de Souza nasceu e mora em Santo André. 

É professor e autor do blog cafeecronicas.com




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