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Obra de Pirandello é lançada em edições históricas
Por João Marcos Coelho
Especial para o Diário
05/08/2001 | 17:05
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A publicação praticamente simultânea de um de seus romances da maturidade, Um, Nenhum e Cem Mil, e de três de suas mais célebres peças teatrais – Seis Personagens à Procura de um Autor, Esta Noite se Representa de Improviso e Cada Um a Seu Modo – renova em boa hora o foco para um dos maiores criadores literários da primeira metade do século XX, o italiano Luigi Pirandello (1867-1936).

Prêmio Nobel de Literatura de 1934, Luigi Pirandello sem dúvida é o responsável pela maior revolução no teatro no período imediatamente anterior a Brecht. Seu conceito de “teatro dentro do teatro” tem na peça Seis Personagens... seu maior exemplo. Quando o antropofágico Oswald de Andrade assistiu-a em Paris, em 1923, ficou alucinado com o truque do palco sem cenário e quase sem luz, e uma trupe que começa a ensaiar uma pretensa peça. Um grupo de pessoas chega até o palco pela platéia e clama desesperadamente por um autor. “Estamos aqui à procura de um autor”, diz um deles. O diretor, espantadíssimo, diz que “aqui não há nenhum autor, pois não estamos ensaiando nenhuma peça nova”. Ao que um dos intrusos diz: “Tanto melhor, tanto melhor então, senhor! Podemos ser a sua nova peça”.

A mesma ambigüidade, Pirandello colocou em toda a sua obra literária, da qual Um, Nenhum e Cem Mil é emblemática. A história conta as desventuras do jovem, rico e ocioso Vitangelo Moscarda, depois de descobrir, por intermédio da esposa, que seu nariz pende para a direita. Pirandello faz dessa banalidade o motivo para uma especulação metafísica e sarcástica – sempre numa prosa cheia de humor e veneno – sobre a identidade do ser humano e sua colocação no tecido da comunicação social. Vitangelo, diz-nos Alfredo Bosi, da USP (Universidade de São Paulo), em excelente ensaio introdutório à edição da Cosac & Naify, “aprende, em um relance, que somos para os outros tão-somente o que parecemos. Convém adequar-nos a essa aparência pública, ainda que essa imagem externa não entretenha qualquer relação com o que somos ou desejaríamos ser na esfera íntima de nossos sentimentos e pensamentos”. Em outras palavras, quem não fala e não age conforme as expectativas que o seu papel social demanda sofrerá sem remissão a impiedade alheia e cedo ou tarde será excluído e fadado à irrisão e à marginalidade.

Vitangelo Moscarda descobre, junto com o defeito no nariz, que nunca tentou contrapor uma auto-imagem consistente de si mesmo àquelas que os outros construíram para ele. Conclui Alfredo Bosi: “Se, para os outros existiam tantos e tantos Moscardas, cem mil aspectos e perfis da sua persona aparente, para ele próprio parecia não haver um único eu que pudesse subsistir e resistir fora da opinião alheia. Para si próprio, afinal, ele era ninguém”.

Dois gestos surpreendentes de Moscarda provocam fortes reações da cidade: primeiro, despeja um casal de velhos pobres que morava em um casebre de sua propriedade; e, quando toda a população de sua cidade, Richieri, acusa-o de criminoso e usurário, faz uma doação pública ao mesmo casal de velhinhos de uma outra de suas casas de grande valor. Aí os que antes o xingavam de usurário passam imediatamente a chamá-lo de louco, inclusive o próprio casal de velhos que recebera a doação. Em seguida, ele doa todos os seus bens, é abandonado pela mulher e opta por viver num albergue junto com mendigos.

De certo modo, ele renuncia a todos os seus “eus”. Vive enfim satisfeito, pois não sendo ninguém e todo mundo ao mesmo tempo, Moscarda não vive mais em si próprio, mas participa das coisas que o envolvem: ele tornou-se um objeto, uma pedra, uma nuvem ou uma planta, tanto faz. Este é o sentido profundo da história, é por meio deste contato com a matéria que Pirandello queria chegar depois da destruição de todas as leis civis e morais da sociedade.

Esmero editorial - É auspicioso que os dois livros ora lançados por editoras diferentes observem um padrão excelente de edição. Pirandello – Do Teatro No Teatro (R$ 42) leva a chancela de J. Guinsburg, editor da Perspectiva. Sua paixão pelo teatro vem se concretizando em diversas publicações fundamentais no Brasil e transformam a Perspectiva na principal editora dedicada a esta manifestação artística. Além disso, o cuidado editorial de Guinsburg levou-o a reproduzir o ótimo artigo de 1977 do crítico Sábato Magaldi, Princípios Estéticos Desentranhados das Peças de Pirandello sobre o Teatro, e Pirandello: ’Sou Aquele Por Quem me Tomam’, de Francisco Maciel Silveira, além de assinar ele próprio um comentário sobre o humorismo em Pirandello. O livro, de 410 páginas, traz o ensaio O Humorismo, de Pirandello, além das três peças em nova tradução, e um ensaio de Annateresa e Mariarosaria Fabris sobre a Presença de Pirandello no Brasil.

A edição da Cosac & Naify para Um, Nenhum e Cem Mil (R$ 28) inaugura uma nova a atraente maneira de se reeditar os clássicos da literatura no Brasil. A Coleção Prosa do Mundo compõe-se de livros capa-dura, com sobrecapa luxuosa, ensaios introdutórios encomendados a especialistas como Alfredo Bosi e – no caso de Pirandello, um bônus muito interessante: uma entrevista feita com o escritor italiano em 1927 por ninguém menos do que o historiador Sérgio Buarque de Hollanda. Outros volumes já lançados com idêntico esmero editorial são: O Diabo e Outras Histórias, de Leon Tolstói; Niels Lyhne, de Jacobsen; e Diálogos com Leucó, de outro italiano raramente editado nas últimas décadas, Cesare Pavese (1908-1950).




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