Política Titulo Entrevista da Semana
‘Visão dos procuradores é que eram o 4º poder’
Fábio Martins
Do Diário do Grande ABC
19/08/2019 | 07:00
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Nario Barbosa/DGABC


Em meio aos holofotes colocados sobre à Lava Jato, o jurista Ives Gandra Martins analisou que a operação marcou momento histórico do País no combate à corrupção, mas considera que houve abuso, principalmente por parte dos procuradores da República. “O comportamento foi inadequado algumas vezes”, afirmou, ao ponderar, contudo, que a condução adotada não influenciou na decisão.

Gandra criticou tratamento impróprio, no qual deveria haver equilíbrio entre defesa e acusação. “A visão dos procuradores é que eles eram o quarto poder.” Ele condenou a postura de Deltan Dallagnol. 

 

Qual a avaliação do senhor a respeito da Lava Jato hoje, após o vazamento de conversas de procuradores com o então juiz Sergio Moro? Acredita que de certa forma houve desgaste?

Em primeiro lugar, a Lava Jato passou para a história do Brasil. Foi importante nessa luta contra a corrupção de tal maneira que, se nós analisarmos a conscientização da população brasileira depois da Lava Jato e a corrupção inaceitável na política, vamos verificar que efetivamente marca um momento histórico nessa nova visão da política no País por parte da sociedade. Segundo ponto, tanto os procuradores quanto o Moro fizeram trabalho muito bom. Levaram a Lava Jato a um resultado em que houve conscientização nacional por força do valor deles. Terceiro aspecto, abusaram. Se nós analisarmos todas essas gravações que surgiram iremos verificar que aquilo que se tinha impressão que aconteceu efetivamente ocorreu. Mas abusaram, sem prejuízo das decisões que foram tomadas. As decisões foram exclusivamente baseadas em provas. O comportamento foi inadequado algumas vezes. A advocacia não foi bem tratada repetidas vezes, só que não houve cerceamento de defesa nem materialmente em relação às provas. No caso do ex-presidente Lula, por exemplo, houve condenação em primeira instância, confirmação por três desembargadores em segunda (no TRF-4), cinco ministros do STJ (Superior Tribunal de Justiça), em terceira, e seis ministros do Supremo Federal. Foram 16 magistrados que examinaram aquelas provas. 

O senhor fala em abuso cometido na operação. Na sua análise, esse caso impactou na credibilidade da Lava Jato? Existiu ilegalidades no processo?

Houve tratamento inadequado, no qual deveria haver equilíbrio entre defesa e acusação, mas não vejo ilegalidades. Existiu tratamento preferencial, que não influenciou na decisão de Moro e de todos os outros que confirmaram na sequência, como no caso do Lula. Me parece que sobre esse aspecto está isento de ilegalidades do valor do conteúdo. Agora, por que esse abuso? Isso é que, talvez, os jornais não tenham abordado até hoje. O Ministério Público pensa ser poder. Não é poder. Se abrir a Constituição, nos artigos 127 a 135, declara que há duas funções essenciais na administração da Justiça: advocacia e MP. Nós somos funções essenciais, mas nem a advocacia nem o MP são poder. A visão dos procuradores é que eles eram o quarto poder. Constituição venezuelana, equatoriana e boliviana, mas principalmente a venezuelana dispõe de cinco poderes: povo, Executivo, Legislativo, Ministério Público e Judiciário. Está na Constituição de lá. Na nossa, não. Aqui o MP é função essencial, relevantíssima, mas idêntica à advocacia. O mesmo direito que o MP tem de acusar, a advocacia tem de defender. Não existe diferença. A meu ver, a advocacia é mais importante ainda, porque o MP tem em qualquer ditadura. Veja no sistema venezuelano. Já a advocacia eu só tenho na democracia.

Houve, contudo, críticas de série de juristas sobre a Lava Jato a ponto de citações de que o conteúdo colhido deveria ser declarado nulo diante das gravações da chamada Vaza Jato. O senhor enxerga possibilidade de o processo ser invalidado? 

Creio que não, na medida em que essas provas foram apresentadas em juízo e sobre elas os advogados de todos os acusados puderam se defender. De rigor, esse tipo de conversa existe em qualquer cidade do Interior entre juiz e promotor. Se isso influenciasse a decisão (seria outra coisa). O código de processo admite que o juiz procure ele mesmo obter provas. Agora, considero inapropriado, abuso, mas se isso tivesse influenciado o direito de defesa – tiveram todos os prazos, audiências públicas. A prova não foi ilegítima. Li o processo do presidente Lula. Tudo que está ali é matéria de prova fática ou testemunhal. Voltando: foram conversas inadequadas, indevidas, mas que não alteraram (a questão do) direito à defesa e a materialidade das provas. Houve sugestões, não ilicitudes. Não sei como o Supremo vai decidir, mas essa é a minha opinião. 

O senhor considera que houve conduta que ultrapassou a barreira ética do então juiz Moro?

Do ponto de vista ético pode-se discutir até que ponto ele poderia estar conversando. Mas no que tange a provas ilícitas, deu sugestões, mas quem obteve foi o Ministério Público. O (Deltan) Dallagnol poderia investigar ministro do Supremo? Não pode, isso é abuso de poder. Dentro da questão da materialidade, juiz e promotor atuando num processo há busca pela verdade dos fatos. Essa verdade material não foi excluída nem houve obtenção ilícita. 

O presidente do STF, Dias Toffoli, decidiu suspender as investigações feitas pelo Coaf, caso não haja autorização judicial. Qual a sua concepção? Inviabiliza apurações já em curso?

Decisão rigorosamente correta. Há artigo no Código Tributário que diz que a autoridade tributária tem que guardar sigilo de todas as informações, podendo, no máximo, fazer autuação. O que o MP quer? Que a Coaf passe informações que o próprio Supremo declarou que não podia compartilhar. O que o Toffoli diz é muito simples: pede autorização judicial. Alguns vieram também dizer que seria o fim da Lava Jato. É só pedir compartilhamento. Por que não querem pedir ao juiz? Porque querem fazer investigação policial. O que o Toffoli diz é que não pode compartilhar sem autorização judicial. Não termina Lava Jato, não inviabiliza. Dá direito a defesa correto, evita abuso. 


Outro aspecto em voga hoje é o conflito entre Judiciário com Legislativo e Executivo. O senhor considera que haja atropelos e obstáculos ao País?

Tem duas correntes no Direito Constitucional, uma delas diz o seguinte: o Judiciário é apenas o legislador negativo. Como ainda sou da época dos dinossauros, acho que o Judiciário só pode ser legislador negativo. O Supremo é eleito por um homem só (presidente da República), é poder excepcional, técnico para dizer qual é o direito vigente, mas não tem nada de legislar nem ser administrador. O Congresso, por 140 milhões de eleitores. O Supremo tem que dizer no máximo que uma lei é inconstitucional, não dizer para o legislador que tem que mudar o regimento, não pode nomear fulano. No momento em que o Supremo perdeu essa visão de legislador negativo, a partir de 2003, quando em um único mês foram substituídos três grandes ministros – Moreira Alves, Sydney Sanches e Ilmar Galvão –, passou a ter outra teoria: consequencialismo jurídico ou neoconstitucionalismo, pelo qual pode atuar em vácuos legislativos, como, por exemplo, quando decidiu sobre homossexualismo. Isso não está na Constituição. Sobre fidelidade partidária também. O Supremo legislou. Foi discutido que caberia ao partido dizer se quer ou não fidelidade. Quando o (então senador) Delcídio (do Amaral, pelo PT) foi preso. O artigo 53 diz que cabe ao Supremo pedir autorização do Congresso para processar e prender. O Supremo prendeu sem autorização do Congresso. Eu tenho profunda admiração pelos 11 ministros do Supremo. Tenho, inclusive, livro escrito com nove deles. Respeito quase místico. 


Mas então o senhor acredita que tem havido quebra das atribuições dos poderes?

Entendo que o presidente Dias Toffoli está tentando fazer com que o Supremo volte a ser legislador negativo. Porque em recente conferência ele disse que a função do Poder Legislativo é prever o futuro, do Executivo é administrar o presente e do Judiciário é decidir sobre o passado. 


Considera que o presidente Jair Bolsonaro tem extrapolado limites do cargo?

Vejo o seguinte: talvez falte um pouco de liturgia do cargo ao presidente Bolsonaro, mas a linha geral do governo tem apresentado coisas positivas. Nunca o País teve juros a 6% ou tivemos inflação inferior neste período, mesmo no começo do Plano Real, situação a 4%. Juro baixo com inflação baixa. Exportações: superavit na balança comercial. Agricultura: safra 5% superior ao ano passado. Os indicadores são favoráveis. Agora, cada frase (dita pelo presidente) das cascas de banana que colocam a ele, uma fala mal colocada, passa a ser sua obra completa, vira manchete dos jornais, crise. O que tenho dito é que o presidente já não é mais deputado. Ele tem que pensar em cada manifestação. A cada provocação ele responde, não é fundamental isso. Tenho a impressão que os resultados devem permitir compreensão melhor dessas turbulências. 


Com relação à prisão em segunda instância, outra pauta que pode entrar em breve no Supremo, qual a sua visão?

Minha posição, como cidadão, acho ótima (a condenação), porque a Justiça não anda no País, é muito lenta, mas como jurista considero que está errado. O que está no artigo 5º, inciso 57, é que somente com trânsito em julgado a pessoa pode ser considerada culpada. Desta forma, é evidente que a pessoa não pode cumprir execução de sentença sendo inocente. Se não é culpada, é inocente. Agora, tendo em vista que isso está sendo discutido no processo do Lula, personalizando o caso, aquilo que poderia ser revisto, fica difícil pelo problema político tomar a decisão. E o que é mais grave: o Supremo durante quatro anos tem aplicado isso. O número de prisões em segunda instância é enorme. Como cidadão, estou de acordo com a orientação do Supremo. Mas me causa mal-estar grande, como jurista, ver que o Supremo mudou dispositivo da Constituição, que, ao meu ver, só poderia ser alterado pelo Congresso Nacional. 




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