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Sergio Kokis escreve sobre as ilusões da memória
Alessandro Soares
Do Diário do Grande ABC
28/01/2001 | 17:01
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Um estrangeiro que não vê as coisas com um novo olhar, mas compara e julga de acordo com a memória. Sergio Kokis, brasileiro por naturalidade e canadense por opção, estreou na ficção em 1994, aos 50 anos, escrevendo em francês o romance A Casa dos Espelhos (Record, 304 págs., R$ 32), só agora publicado no Brasil. É uma obra memorialista de formação, escrita em primeira pessoa: um pintor brasileiro exilado em um país gelado, longe do calor, dos sabores e odores dos trópicos. Kokis reflete e fantasia as duas realidades do personagem: antes do exílio, a infância e o colégio; e já maduro, vivendo como estrangeiro, entre telas que reproduzem seus afetos, medos, angústias e emoções.

O tom é autobiográfico, mas o autor não considera que seu livro deva ser interpretado dessa forma. Kokis nasceu no Rio em 1944 e trabalhou como repórter no jornal Diário de Notícias em 1964 e 1965. Morou na França durante dois anos a partir de 1967 graças a uma bolsa de estudos, após formar-se em Filosofia na Universidade do Brasil. Doutorado em psicologia, Kokis seguiu para o Canadá onde atuou, de 1969 a 1996, como psicólogo clínico até se dedicar exclusivamente às suas telas e à literatura.

Em 1975, naturalizou-se cidadão canadense e vive em Montreal. É considerado um dos mais importantes escritores contemporâneos no Canadá. A Casa dos Espelhos (Le Pavillon des Miroirs, no original) é o nome de uma ilha do norte canadense, batizada como título da obra em uma homenagem do governo canadense ao autor. Kokis tem ao todo oito livros publicados no Canadá, entre romances e obras sobre estética.

A reflexão estética é uma das buscas de A Casa dos Espelhos. O autor procura refletir o porquê de alguém se interessar por imagens plásticas, mesmo sem ter tido influências para isso. Essa psicologia da criação artística tomaria rumos teóricos se o personagem experimental criado justamente para desenvolvê-la não tivesse caído no gosto do autor. Então, a ficção falou mais alto e a reflexão ficou para outro trabalho, este sim teórico, apresentado em cursos e conferências.

Esse artifício possibilitou um aprofundamento da personalidade do protagonista e suas contradições nos dois tempos do romance, passado e presente, que convivem lado a lado. Em um tempo, são narradas a infância e a adolescência; no outro, a maturidade solitária já em outro país. Os personagens não são nominados em sua maioria, inclusive membros da família do protagonista.

A obra não cai na armadilha do “eu era feliz e não sabia” e nem o personagem se fia na saudade da aurora de sua vida. Sua infância foi vivida em uma linha social abaixo da classe média, próxima da miséria, entre o ateísmo do pai, imigrante da Letônia cheio de iniciativa, e a religiosidade da mãe, brasileira, e das tias, que também traziam o misticismo suburbano para casa. Adolescente, foi aluno brilhante que não se interessava em tirar boas notas. Anotou o horror social da miséria urbana disfarçada apontando os cadáveres que flutuam diariamente no rio. Desde seu lar, vê a repressão sexual ceder lugar para o bordel instaurado em casa. Exilado e gelado, comenta suas memórias convertidas nas imagens que pinta – reflexos da amargura –, tristezas e a ausência da dignidade similar ao calor do subdesenvolvimento tropical, sem solução.

O fato de Kokis ser estrangeiro, em todos os sentidos, pesou na obra. O Brasil, particularmente o Rio, centro e subúrbios, seus antigos carnavais, as viagens pelo interior, o convívio com prostitutas, são idealizados pelo autor. Destacado de seu meio, ele pode modificar seus pontos de vista e suas perspectivas de realidade, usando as contradições do personagem nos dois tempos para fantasiar uma realidade que mistura símbolos e ilusões pessoais.




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