Cultura & Lazer Titulo
Nanete e sua arte da fé
Ricardo Ditchun
Da Redaçao
30/01/1999 | 16:00
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Quando tinha 8 anos, em Campina Grande, na Paraíba, Nanete Azevedo, hoje com 54, enfrentou problemas de visao. Passada a dificuldade, seus pais logo se preocuparam com o ritual de agradecimento a Santa Luzia, reconhecida como protetora espiritual dessa faculdade biológica específica. Optaram por oferecer-lhe um par de olhos vivos e, para tanto, elegeram uma galinha garnisé branca. Nanete criou a ave, afeiçoou-se a ela e, na hora de executar o ritual, recuou. Essa é uma das lembranças que motivam o processo de criaçao da arte-educadora de Sao Bernardo. A arte sacra, portanto, é a raiz de um conjunto de trabalhos essencialmente primitivos. Parte dessa produçao pode ser vista, até 20 de fevereiro, no Centro Cultural do Bairro Assunçao.  A exposiçao, denominada A arte de quem ensina arte, reúne trabalhos de quatro professoras das oficinas oferecidas pelo espaço cultural do município. Nanete mostra quatro objetos que misturam técnicas como pintura, pátina e esculturas em argila. A série, Por uma graça alcançada, surge sob a forma de pequenos oratórios que sao apresentados ao público do mesmo jeito que eles sao vistos nas milhares de salas de ex-votos das capelas e igrejas do país.  As caixas dos oratórios sao dominadas por cores de fundo que remetem ao universo social das pequenas cidades do Nordeste do país e, também, de Estados como Minas Gerais e Mato Grosso. Nanete, assim, selecionou o azul, o amarelo, o vermelho e o verde. No topo de cada um foi instalado um ornamento que estabelece uma ligaçao entre a estética barroca e as construçoes e decoraçoes de edifícios sacros. Nas duas faces internas das portas dos oratórios, que permanecem abertas, figuram as imagens das entidades religiosas evocadas. Ocupando o espaço interno, em destaque, ficam os ofertórios, lembranças figurativas tridimensionais moldadas em argila.  As obras, entao, pela ordem, evocam graças proporcionadas por entidades como um anjo, Sao José, Nossa Senhora e Santo Antônio. Respectivamente, as ofertas sao uma mao (o anjo teria evitado que um trabalhador rural a perdesse durante a lida com a foice); um pé envolto por uma serpente (apesar do acidente, Sao José evitou a morte); uma cabeça de homem (Nossa Senhora pôs fim a uma doença); e uma cabeça de mulher (Santo Antônio, mais uma vez, providenciou um casamento). A leitura dessas situaçoes é imediata. Contribui para isso a tradicional organizaçao estética naïf, uma ingenuidade que, em telas, aparece organizada de acordo com a rígida hierarquia que define a colocaçao dos elementos figurativos no espaço: pessoas, santos, demônios, animais, árvores, casas etc.  A leitura dos objetos de Nanete nao é diferente. As situaçoes descritas sao auto-explicativas. Os santos retratados nas faces das portas foram pintados no alto. Sob eles estao as cenas terrenas - o problema que foi solucionado. "A intençao é recuperar a simplicidade dessas manifestaçoes religiosas populares. A relaçao é sempre imediata: salvou meu pé, dou, em troca, um pé de jacarandá ou de barro. Ao mesmo tempo, também faço uma crítica a esse desespero que a igreja tem demonstrado para ganhar adeptos. O melhor exemplo é a distância que existe entre, por exemplo, o padre Marcelo Rossi e a fé autêntica da populaçao humilde do Nordeste", explica a artista.  Frida Kahlo - A evocaçao que Nanete faz do passado, traumática do ponto de vista social, também estabelece um diálogo com muitos outros artistas que incorporaram sofrimentos físicos e sentimentais em suas obras. Entre tantos, destaca-se a peculiar experiência pictórica da artista plástica mexicana Frida Kahlo (1907-1954). Na maior parte de suas pinturas, Frida reuniu elementos que lembravam as lesoes resultantes de um sério acidente de trânsito que ela sofreu quando tinha 15 anos, e, também, aspectos de suas turbulentas experiências amorosas com, entre outros nomes, o teórico marxista russo Leon Trotsky e o pintor mexicano Diego Rivera.



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