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Desafio em dose dupla

Quase todos os dias, o jornalista e fotógrafo Dadá Moreira, 42 anos, pratica escalada adaptada

Por Heloísa Cestari
Do Diário do Grande ABC
30/10/2008 | 07:03
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Quase todos os dias, o jornalista e fotógrafo profissional Dadá Moreira, 42 anos, pratica escalada em uma parede adaptada em seu apartamento, na Capital. Também já fez rafting, cascading, trekking e até pára-quedismo. Habituado ao manuseio de cordas, remos e mosquetões, ele seria apenas mais um de muitos aficionados por adrenalina no Brasil não fosse um detalhe: Dadá é cadeirante. Sofre de ataxia espinocerebelar, doença genética degenerativa que afeta o equilíbrio, a coordenação motora, fala fina e visão.

Assim como ele, um número cada vez maior de pessoas com deficiência e mobilidade reduzidas começa a experimentar os benefícios de desafiar paredões, corredeiras e alturas vertiginosas em busca da sensação - e do direito - de se sentirem vivos, atuantes num mundo feito para ‘normais'.

Mais do que exercitar músculos e colaborar com a reabilitação de casos reversíveis, o turismo de aventura recupera o moral, a auto-estima, incita o deficiente a desafiar suas próprias limitações e proporciona um sentimento de liberdade difícil de descrever por quem nunca viveu preso a uma cama ou cadeira de rodas.

De acordo com o último censo realizado pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), 24,6 milhões de brasileiros possuem algum tipo de deficiência, o que representa 14,5% de toda a população. Destes, metade se considera turista em potencial, mas oito em cada dez desiste de viajar por não encontrar estrutura adequada no destino, como quartos de hotel adaptados, estacionamento exclusivo, piso tátil, cardápio em Braille e acesso a todos os pontos turísticos e atividades de lazer.

Algumas leis, no entanto, já começam a acenar para melhorias no setor. Em setembro do ano passado, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva lançou o programa social Inclusão das Pessoas com Deficiência, que prevê investimentos de R$ 2,4 bilhões até 2010 para a implementação de projetos nas áreas de educação, saúde, habitação, transporte e acessibilidade a pessoas com deficiência e mobilidade reduzidas.

E em dezembro próximo termina o prazo estabelecido pelo decreto de número 5.296, de 2 de dezembro de 2004, para empresas e comércios adaptarem suas instalações ao ir-e-vir de pessoas com deficiência ou mobilidade reduzidas. Após esta data, os estabelecimentos serão passíveis de multas e autuações.

Além da preocupação em garantir qualidade de vida às pessoas com deficiência, números mostram que investimentos no setor tendem a ser lucrativos.

Segundo informações da Abeta (Associação Brasileira das Empresas de Ecoturismo e Turismo de Aventura), o mercado de produtos e serviços destinados ao segmento movimenta cerca de R$ 1 bilhão por ano. Só a venda de cadeiras de rodas faz girar R$ 100 milhões. E o comércio de automóveis com isenção de impostos e adaptações veiculares, outros R$ 400 milhões.

Quanto ao turismo, ainda não há levantamentos precisos de cifras nem do perfil dos viajantes especiais. Mas uma coisa já se sabe: eles podem incrementar a venda de pacotes domésticos em, pelo menos, 40%, considerando-se que um turista com deficiência leva, em média, dois acompanhantes, e recomenda o destino a outros turistas especiais sempre que se sente bem acolhido na viagem.

"A maioria viaja com quatro ou cinco pessoas da família", observa José Fernandes Franco, proprietário do Parque dos Sonhos e do Campo dos Sonhos, em Socorro, dois dos três primeiros estabelecimentos do Brasil escolhidos para servir de piloto do projeto Aventureiros Especiais sob o aval do Ministério do Turismo.

Hotéis terão de se adaptar

Na recepção, nada de balcão e muito menos degraus. Nos banheiros, portas largas, barras de segurança, piso antiderrapante, cadeira especial no chuveiro e vasos sanitários mais altos. E na área das piscinas, piso antiderrapante, barras de apoio e até uma cadeira-elevador que coloca o hóspede no mesmo nível da água, sem risco de escorregões. Isso sem citar as informações em Braille no cardápio do restaurante, no guia de serviços do apartamento e nas sinalizações do elevador... O que seria o hotel dos sonhos do turista com deficiência ou mobilidade reduzidas já é realidade em Gramado, na Serra Gaúcha. Trata-se do Villa Bella, único empreendimento do Brasil a obter o certificado de Acessibilidade Total do Instituto Pestalozzi.

Na rede hoteleira como um todo, no entanto, a realidade é bem diferente. Embora todo estabelecimento seja por lei obrigado a ter pelo menos 5% de suas acomodações adaptadas, na prática poucos cumprem a exigência.

Segundo dados do Ministério do Turismo, o Brasil dispõe de 25,7 mil meios de hospedagem. A disponibilidade é de 1,1 milhão de quartos. Mas nem 20% destas unidades dispõem de recursos para receber deficientes físicos. "Há hotéis com 600 apartamentos onde apenas um é acessível. E muitos não têm sequer um", diz o diretor de acessibilidade da ABIH (Associação Brasileira da Indústria de Hotéis) e proprietário do Villa Bella, Roger José Baqui, estimando que 70% a 80% dos hotéis dispõem de acomodações com algum tipo de adaptação.

Para adequar os estabelecimentos à Lei 5.296, que entra em vigor em 1º de janeiro do ano que vem, a ABIH vem realizando um trabalho de conscientização com empresários do trade para mostrar não só a utilidade como também as vantagens de se ter apartamentos adaptados a hóspedes com deficiência. "Além de não correrem o risco de serem autuados, os hotéis que criarem a infra-estrutura terão um diferencial, fidelizando esses clientes e suas famílias", observa Baqui, lembrando que as mudanças devem ser universais. "Não se trata de adaptar os quartos apenas para cadeirantes. É preciso pensar em qualquer outro tipo de deficiente. Caso contrário, eles vão continuar viajando para o Exterior."

O atendimento também precisa ser especial. "Cursos de capacitação são fundamentais. Um cego, por exemplo, precisa que alguém lhe diga a disposição da comida no prato."

Por fim, deve-se pensar na acessibilidade das áreas comuns e até mesmo do destino. "Não adianta ter quartos adaptados se a pessoa precisa subir uma escada para chegar ao quarto. O empreendimento tem de ter 100% de acessibilidade. É, inclusive, uma das exigência da Fifa para a Copa do Mundo. E o mesmo deveria ser pensado em relação ao transporte, à cidade e seus equipamentos turísticos."

Socorro vira referência

Quando o assunto é acessibilidade, a cidade de Socorro promete ser referência nacional já a partir de dezembro. Primeiro, três propriedades do município - Campo dos Sonhos, Parque dos Sonhos e Monjolinho - foram escolhidas para sediar o projeto-piloto Aventureiros Especiais, que previa identificar as dificuldades e estabelecer as adaptações e procedimentos que cada modalidade esportiva exige conforme o tipo de deficiência.

"Escolhemos Socorro por ser próxima da Capital e concentrar um grande número de atividades de aventura", explica um dos idealizadores do projeto, Dadá Moreira, da ONG Aventura Especial.

"Ficamos mais de um ano estudando as modalidades com médicos, fisioterapeutas, psicólogos e deficientes voluntários. A partir daí, desenvolveu-se o Manual do Gestor, que deverá ser impresso pelo Ministério do Turismo para ser distribuído em outras cidades que queiram seguir o exemplo", completa José Fernandes Franco, proprietário do Parque dos Sonhos e do Campo dos Sonhos, que juntos recebem cerca de 150 aventureiros com deficiência por mês.

O programa foi tão bem elaborado que, no final do ano passado, o Ministério do Turismo propôs estender o conceito a toda a cidade. Era o pontapé inicial para o projeto Socorro Acessível, que visa adaptar vias públicas, equipamentos turísticos e estabelecimentos privados à recepção de visitantes com deficiência, mediante uma parceria entre Prefeitura, empresários locais e o Ministério do Turismo, que liberou R$ 1,4 milhão para que toda a cidade sirva de referência em acessibilidade até o início de dezembro e contratou a Avape (Associação para Valorização e Promoção de Excepcionais) para dar apoio através de palestras.

"Quando terminou o projeto Aventureiros Especiais, ele foi mostrado à Marta (Suplicy, então ministra do Turismo) e ela levantou uma questão: ‘A cidade está preparada para receber essas pessoas?' A resposta, obviamente, foi que não. Aí ela enviou um emissário à cidade perguntando se aceitávamos fazer parte de um projeto-piloto que servisse de exemplo a outros destinos. Além de melhorar a imagem da cidade com a inclusão social, vimos um nicho de mercado muito grande, que ainda não havia sido explorado, e abraçamos o desafio", conta o diretor do Departamento de Desenvolvimento Econômico de Socorro, Carlos Tavares.

O resultado poderá ser conferido a partir de dezembro, data-limite para a conclusão de todas as obras. "Vamos ter um roteiro adaptado pelo Centro, desde o prédio histórico da antiga Prefeitura - o Palácio das Águias, do início do século passado - até o museu, passando por ruas com calçadas de piso tátil, semáforos sonoros, praças e teatros adaptados", antecipa Tavares, que também anuncia reformas em pontos turísticos como o mirante do Cristo, o recinto de exposições e o Horto Municipal, que ligará o Moda Shopping à feira permanente de malhas por meio de um jardim aromático.

"Não haverá outra cidade igual no Brasil. Serviremos de exemplo para o País. É uma honra muito grande", completa o diretor, que espera um crescimento de 15% a 20% ao ano no fluxo turístico por conta das mudanças. "Já tivemos um aumento de 26,7% na oferta de empregos diretos no turismo. E uma vantagem é que o turista com deficiência não depende do final de semana para viajar, o que dará maior sustentabilidade ao empresariado local."

A cadeirante Márcia Aparecida Botacim, 31 anos, de Socorro, testou as novidades e aprovou: "Já fiz tirolesa seis vezes no Parque dos Sonhos. É muito gostoso. Dá medo na saída, mas depois é tão rápido". A moradora, que sofre de paralisia cerebral, também já observou mudanças na cidade. "Tem muitas calçadas que estão rebaixadas. Uso andador e ficou bem mais fácil para eu me movimentar."




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