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GNT mostra vida e obra do cineasta Humberto Mauro
Por Do Diário do Grande ABC
16/04/2000 | 17:20
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Durante um de seus longos dias de filmagem, nos idos da década de 30, o cineasta Humberto Mauro atraiu olhares curiosos no set enquanto tentava, com o auxílio de um conta-gotas, embebedar um bem-te-vi que nao queria ficar parado sobre um carro-de-boi.

"Esse plano é muito importante porque ele vem logo depois do urubu pousado no carro abandonado: o do urubu dá a idéia de morte, enquanto o do bem-te-vi mostra que a vida continua apesar da morte das coisas", explicou, certamente diante de muitos queixos caídos.

Assim era Humberto Mauro: um homem que construía, a partir da simplicidade, uma obra revestida por um lirismo extremamente particular e marcada por elementos genuinamente brasileiros. A partir desta segunda, a vida e obra desse precursor do cinema nacional será apresentada no documentário Sabor da Terra - O Cinema de Humberto Mauro, que estréia às 22h30 no GNT. Com direçao e roteiro de Roberto Moura e produçao de Sérgio Santos, da Corisco Filmes, o programa, narrado pelo ator Paulo Betti, foi dividido em três episódios. A segunda e terceira partes serao exibidas no mesmo horário, na quarta e quinta-feira.

A co-produçao entre a Corisco e o GNT é resultado de um extenso trabalho de pesquisa de Sérgio Santos. Durante um ano e meio, ele resgatou imagens e sons - muitos quase esquecidos - na Cinemateca Brasileira, em Sao Paulo, na Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio, no Centro Técnico Audio-Visual da Funarte (CTAV), entre outros arquivos da memória audiovisual brasileira. "Há também imagens de making of de dois documentários produzidos no fim da vida do Humberto, que renderam um material muito rico depois de recuperadas", conta Santos.

O primeiro episódio de Sabor da Terra parte do nascimento do cineasta, da infância na pequena Volta Grande, distrito de Além Paraíba - cidade localizada na divisa com o Estado do Rio -, chegando ao primeiro contato com o cinema, nos anos 20, quando absorveu influências de grandes diretores da época, como Charles Chaplin, King Vidor e, principalmente, David W. Griffith e Henry King. "Ele via os filmes e queria fazer igual, mas nao havia cinema brasileiro na época", diz Santos. A primeira experiência veio logo em 1925, com o curta-metragem Valadao, o Cratera, de apenas cinco minutos de duraçao. Depois, vieram Tesouro Perdido (1927), Brasa Dormida (1928) e Sangue Mineiro (1929).

A década de 30, fase áurea da carreira de Mauro, é mostrada no segundo episódio do documentário. É a fase em que o seu "cinema cachoeira" surge com força em longas-metragens clássicos, como Ganga Bruta (1933) e Descobrimento do Brasil (1937). "Contudo, a qualidade de sua produçao dessa fase seria reconhecida durante a velhice de Mauro", lamenta Santos. O episódio fala ainda da ida do cineasta para o Rio, de seu sucesso nos grandes estúdios, a experimentaçao de novas linguagens, da amizade com Heitor Villa-Lobos e da influência do antropólogo Roquete Pinto em sua obra.

A terceira parte de Sabor da Terra invade a década de 50 quando Mauro volta para Minas Gerais e filma O Canto da Saudade e o documentário A Velha a Fiar, e chega aos anos 60, época em que ocorreu uma pororoca cinematográfica, com o encontro entre Humberto Mauro e a novíssima geraçao que desencadearia o cinema novo, de Gláuber Rocha, Nélson Pereira dos Santos e Joaquim Pedro de Andrade. "Esse pessoal se entrosou com o Humberto e passou a interessar-se e a estudar sua obra", diz Santos.

Gláuber chegou a afirmar que Mauro era o precursor do cinema novo. Segundo o produtor, o filme é uma espécie de painel da história do cinema brasileiro dos anos 20 à produçao atual. A narrativa em tom biográfico sao entremeadas repercussoes na mídia do trabalho de Mauro no decorrer da carreira. "A intençao foi contar a história de um homem que vivia no interior e, mesmo sem recursos, fazia filmes de alto nível", resume Santos. "Ele provou que é possível fazer cinema mostrando carros-de-boi, cavalos e porcos."

Para Santos, a obra de Mauro representa a alma brasileira, com sua temática livre de influências estéticas estrangeiras. "O cinema hoje sofre uma enorme influência da produçao audiovisual estrangeira, quase um dumping", reclama o produtor. "A obra dele prova que é possível enfrentar isso de forma artística."

Santos, que conviveu com Mauro durante as filmagens de Fazendas Clássicas, de 1976, lembra de uma frase que ouviu do cineasta: "O progresso é uma coisa antifotogênica; é preciso contrapor a beleza de um carro de boi com um caminhao pesado, ou uma singela roda de moinho d'água com uma caixa de metal com um nome escrito em inglês."

Sabor da Terra percorre a trajetória de um mineiro que teimou em acreditar no cinema brasileiro até o dia de sua morte, em 5 de novembro de 1983. Dez anos antes, numa entrevista a uma revista carioca, deu um conselho aos jovens cineastas, mesmo sem gostar muito de conselhos ("Sao iguais a cerveja quente", dizia): "Que procurem avançar cada vez mais, descobrindo sempre uma nova forma de contar a história; contudo, nao acho que seja necessário falar só de coisas brasileiras, mas é muito melhor tocar em assuntos nossos."




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