Cultura & Lazer Titulo
Marsala, um vinho versátil
Por Silvio Lancellotti
Especial para o Diário
09/09/2007 | 07:12
Compartilhar notícia


Localizado no extremo oeste da Ilha da Sicília, em pleno coração do Mar Mediterrâneo, desde a sua fundação, nos arredores de 400 a.C., o porto de Marsala funciona como referência cultural e comercial para os navegadores que atravessam aquelas plagas. Foi entreposto de pescados, forneceu víveres e água fresca – mas, fundamentalmente, funcionou como um ponto geográfico de referência para quem vislumbrava os seus contornos. Marsala significava o repouso, uma noite em terra firme, talvez o banho quente, uma boa refeição.

Por Marsala um certo Giuseppe Garibaldi (1807-1882) invadiu a Sicília, em 1860, com os seus legendários “Mil Homens”, determinado a providenciar a unificação da Itália. Bem, antes, porém, em 1773, um britânico batizado de John Woodhouse (1733-1812) já tinha colocado aquele logradouro no mapa gastronômico do planeta. Um negociante de bebidas, Woodhouse se fascinou com o vinho de Marsala, interessantemente adocicado, e muito mais barato do que os produtos correlatos que já conhecia, como o Porto e como o Xerez.

Na época, se acreditava que tais produtos ganhavam maturação e corpo quando, em tonéis de madeira, viajavam de navio por diferentes climas e temperaturas. O britânico era um especialista em Porto e Xerez. E a sua ambição eclodiu.

Percebeu que, no Marsala, faltava apenas a gradação alcoólica superior que encantava os seus fregueses, os compradores do Porto e do Xerez.

Fácil, ele pensou. Incorporou, ao vindo da Sicília, uma boa quantidade de aguardente de uvas. E, com o resultado, preencheu todos os tonéis vazios do seu barco, exatamente cinquenta. Depois de um longo trajeto, que o levou ao Levante, de retorno a Dover, na Inglaterra, constatou que um milagre acontecera. De fato, a inclusão da aguardente havia aperfeiçoado, e bastante, o vinho de Marsala.

Em visitas sucessivas, Woodhouse aprimorou a sua técnica, graças ao apoio de um milionário, seu compatriota, Benjamin Ingham (1740-1814), que se instalou na Ilha, em Marsala implantou uma herdade fenomenal – e, ainda, ajudou os produtores locais a revigorarem a qualidade das suas uvas típicas, a Cataratto, a Grillio e a Inzolia.

Melhor, a dupla Woodhouse e Ingham levou à Sicília uma metodologia complexíssima, porém crucial, de envelhecimento do vinho, aquela chamada de Soleras, que os realizadores do Porto e do Xerez bem conheciam – mas, por preguiça e por economia, já não mais utilizavam.

A Soleras consiste na superposição perfeita de cinco tonéis de árvores diversas. Numa explicação simplificada, primeiro se colocam, em todos, até o limite de 2/3 do volume, com o vinho ainda jovem. Assim que o conteúdo do vasilhame de cima ameaça chegar ao ponto, cerca de doze meses, se transfere 1/3 ao recipiente abaixo – e daí em diante, no desenrolar de cinco anos. O vinho premium de Marsala ainda descansa por sessenta meses, nas garrafas.

A cor definitiva, dourada, âmbar ou rubro-acastanhada, depende do teor das texturas dos tonéis. Empresas como as de Vincenzo Florio (1883-1959) e de Carlo Pellegrino (1887-1961), ambos, curiosamente, entre os pioneiros das corridas de automóveis na Velha Bota, desenvolveram inúmeras variações dos produtos basilares.

Extremamente versátil, o Marsala escolta as sobremesas, os queijos, as frutas – e, na culinária, se adaptou de maneira muito mais sossegada do que o Porto ou o Xerez, conforme atestam as duas receitas que eu exponho neste domingo, ao lado das minhas dicas de plantão, é claro...

A modernização do madeira - Bem mais antigo do que o Marsala, o vinho da Ilha da Madeira já existe faz cerca de trezentos anos. Também recebe a adição de aguardente de uvas no seu procedimento de fortificação. Mas, em vez da metodologia Soleras, aquela dos tonéis em superposição, envelhece de maneira bem diferente, em estufas – uma modernização lógica das viagens nos porões dos navios. Ainda, hoje, ao invés dos antigos barris de madeira, a fortificação ocorre em fartos cilindros de aço inoxidável, rodeados por serpentinas com água circulante, lentamente, a cerca de 50 graus centígrados, durante noventa dias. Depois, acontece um estágio de repouso, de mais noventa dias, à temperatura ambiente. Na falta de um Marsala razoável, de todo modo, não hesite em usar um bom Madeira.

Leite, ovo e ervas aromáticas - Por suas peculiaridades, graças à metodologia Soleras, às características das suas uvas, inencontráveis em outras plagas do planeta, o vinho de Marsala se predispõe a uma enorme quantidade de composições, digamos, no mínimo insólitas. Ao contrário do Madeira, do Porto e do Xerez, um Marsala pode se transformar em licor, graças à inserção, em qualquer etapa, na passagem do líquido básico que desce nos cinco barris, em cinco anos, de ervas aromáticas, de leite e até de ovo. Um Marsala al Uovo, como o fenomenal da Pellegrino, leva gema e leva clara, fica singularmente denso e é absolutamente ideal como um ingrediente de gemadas ou de zabaiones – ou, as gemas quentes, no banho-maria ou mesmo no gratinador, para a perpetração de uma Crême Brulée.

Receitas

Scaloppine al marsala
Ingredientes, para uma pessoa: Vinho de Marsala, ou o equivalente, o quanto bastar. 3 filezinhos homogêneos de mignon, nas mesmas dimensões na espessura e na horizontal, cerca de 100g de peso cada qual. Sal. Pimenta-do-reino. Farinha de trigo. 8 champignons-de-Paris, delicadamente laminados. Manteiga. Arroz já cozido. Óleo de milho. 1 batata grande, com a casca.
Modo de fazer: Numa cumbuca rasa, coloco os filezinhos de mignon e cubro com o Marsala. Faço o mesmo com os champignons, em outra vasilha. Esqueço, por meia-hora. Escorro os filezinhos, sem desperdiçar o seu caldo. Tempero os filezinhos com o sal e com a pimenta-do-reino. Passo na farinha de trigo. Numa frigideira, derreto uma boa colherada de manteiga. Douro os filezinhos, um minuto de cada lado. Retiro. Reservo. No mesmo fundo, agrego o vinho dos champignons, mais meia xícara, de chá, de Marsala, e mais uma pelota de manteiga. Levo à fervura. Rebaixo o calor. Paralelamente, corto a batata em pedaços graúdos e, em outra frigideira, douro no olho de milho. No momento em que eu percebo o vinho se adensar, incorporo os filezinhos e os champignons. Meramente aqueço. Retiro, disponho a carne, elegantemente, no prato que irá à mesa. Por cima, espalho os champignons, com um pouquinho do molho. No restante do molho, salteio o volume desejável de arroz. Monto as Scaloppine com o arroz inebriado e com as batatas bem rústicas ao lado.

Melone alla vivi
Ingredientes, para uma pessoa: 1 melão do tipo Golden, de casca bem dourada. Vinho de Marsala, ou o equivalente, o quanto bastar. 1 colher, de chá, de mel. 1 colher, de mesa, de vinagre do tipo balsâmico. 2 colheres, de sopa, de folhas de hortelã, bem batidinha. 1 pitada de curry. 4 castanhas-do-pará, bem trituradas. 1 cereja em conserva. 1 ramo bem bonito de hortelã.
Modo de fazer: Corto o melão ao meio. Na parte com o seu fundo mais rombudo, faço um talho, de modo que possa se equilibrar sobre um prato. Com uma colher, elimino as suas sementes e escavo o seu miolo, para que me sirva de recipiente. Embrulho em papel-filme e guardo na geladeira. Daí, com um apetrecho apropriado, extraio dezoito bolinhas da polpa da outra parte do melão. Coloco numa cumbuca. Cubro com Marsala. Agrego o mel, o vinagre, a hortelã, o curry e as castanhas-do-pará. Suavemente, misturo e remisturo. Cubro com papel-filme e guardo na geladeira. Mais dez minutozinhos. Retiro a parte que será recipiente e a vasilha com as pelotas. Encho o vazio da parte que será recipiente com as pelotas e com o seu caldo, ternamente reviradinho. Enfeito com a cereja em conserva e com o ramo de hortelã – e levo à mesa.




Comentários

Atenção! Os comentários do site são via Facebook. Lembre-se de que o comentário é de inteira responsabilidade do autor e não expressa a opinião do jornal. Comentários que violem a lei, a moral e os bons costumes ou violem direitos de terceiros poderão ser denunciados pelos usuários e sua conta poderá ser banida.


;