Mãe de todos os gêneros textuais, a carta teve grande importância na história da humanidade. Há pelo menos 2.000 anos, por exemplo, foram usadas pelos apóstolos para ajudar a contar a história de Jesus. Tempos depois, por Pero Vaz de Caminha, para dar conta ao rei de Portugal Dom Manuel do descobrimento de novas terras. No caso, o Brasil. Há pouco foi descoberta uma, endereçada a Manuel Bandeira e escrita por Mário de Andrade, que admitia entre uma frase e outra a sua homossexualidade. E, a mais recente, e não tão menos polêmica, a do vice-presidente Michel Temer à presidente Dilma, que deu início ao rompimento dos dois, na chapa e na vida.

Como vimos, palavras escritas não podem ser apagadas. Diferentemente do que acontece com as mensagens virtuais, usadas com frequência atualmente e tão voláteis. Na contramão dos tempos, no entanto, há quem ainda use – pasmem – do subterfúgio físico para se comunicar. “Carta é amor”, diz a dona de casa Ariane Kelly da Costa, 32 anos, de Santo André.

Ela se apaixonou pelas correspondências ainda criança, quando via as irmãs mais velhas conversarem até com pessoas que moravam no Exterior por meio de texto. Arriscou trocar algumas cartas, mas como ainda era criança não teve muito retorno. Com 14 anos, quando começou a ter respostas, o ICQ (programa de comunicação pioneiro na internet) apareceu e, em seguida, o e-mail. “De repente fui parando (de mandar cartas). Consegui amigo até no Paraná e recentemente comecei a lembrar disso, me deu certa nostalgia.”

Procurou na internet informações sobre pessoas que mandam cartas ainda hoje. E foi então que achou o blog Trocando Cartas (trocasdecartas.blogspot.com.br) e se inscreveu, sem saber se seria correspondida. Só que nas primeiras semanas recebeu cartas de São Paulo, Santo André, Ceará e Minas Gerais. “Escrever é trabalhoso e a mensagem virtual não tem toda magia que uma carta tem. Quando você a lê escuta a voz de alguém, é a mesma sensação proporcionada pelo livro. Não há nada que se compare a isso. Mais para frente pretendo incentivar a minha filha (10 anos) a escrever também”, diz.

O blog em questão foi criado, há uma década, pela assistente comercial Elisângela Martins. Ela, que dos 13 aos 30 anos se correspondeu com mais de 300 pessoas (foram cerca de 3.000 cartas), deu um tempo no hobby e, meses depois, decidiu retomá-lo. Por motivos descritos no blog: nostalgia, conhecer pessoas e suas histórias pessoais. “Durante essa década fiquei um tempo sem atualizar e quando reativei o blog tinham mais de 1.000 pessoas querendo se inscrever”, lembra.

Hoje, são 1.098 cadastrados e mais de 200 mil visualizações do blog, que não para de crescer. “E não há nada mais gratificante do que isso, é minha paixão. Comecei porque era extremamente tímida e vejo que hoje posso ajudar as pessoas a conversarem, se conhecerem.” Seu sonho é fazer com que o blog se torne um portal.

GRATUITO
E quem não sabe colocar no papel o que pensa? É só ir a uma unidade do Poupatempo – na região, a de São Bernardo – e procurar o setor do Programa Escreve Cartas, inspirado em Dora, escritora de cartas de Fernanda Montenegro em Central do Brasil. É lá onde 11 voluntários, entre eles Bernardina Fernandes Chagas, auxiliam as pessoas a se corresponderem gratuitamente. “Ajudar é o que me move a estar aqui”, diz. Ela é a voluntária mais antiga e já ajudou mães a conversarem com filhos presos, a um fã pedir para conhecer Daniel e a um marido a agradecer à mulher pela vida dividida há décadas. Que Fernando Pessoa me desculpe, mas as cartas, sejam elas de amor, agradecimento ou interação, não têm nada de ridículas.