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Autópsia
Por Cássio Gomes Neves
Do Diário do Grande ABC
09/09/2006 | 18:21
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Parecia inevitável que uma autópsia cinematográfica dos eventos de 11 de setembro de 2001 nos Estados Unidos tivesse em seu rodapé a assinatura de Oliver Stone. O sujeito autodiplomou-se cineasta-legista do país onde vive e trabalha, autopromoveu-se fiador da história recente da nação ao longo de uma filmografia que dura 35 anos e 21 filmes. O último deles, As Torres Gêmeas, é a tal autópsia que Stone comete sobre os ataques terroristas que pulverizaram o World Trade Center e fraturaram o edifício do Pentágono. O filme, que já estreou nos Estados Unidos e foi apresentado no 63º Festival de Veneza, estréia no Brasil no próximo dia 29. Chega ao país precedido por maus augúrios.

Manipulador, sentimentalóide, apolítico, desonesto. A lista de injúrias verbais que As Torres Gêmeas recebeu nos Estados Unidos e em Veneza é extensa e variada. Talvez porque o filme seja a execução fiel daquilo que o diretor, em entrevista ao jornal The New York Times, vaticinou: “(As Torres Gêmeas) Não é sobre o World Trade Center, na verdade. É sobre qualquer homem ou mulher que se viu exposto ao fim de suas vidas, e como eles sobreviveram”. Um decreto de isenção política provavelmente inesperado e indesejado, num momento em que, passados cinco anos do fato, anseia-se ver a arte como um meio de sutura ou de investigação históricas.

Stone, que já refogou a guerra do Vietnã, o assassinato de Kennedy e a destituição de Nixon, não poderia ver-se preterido da exumação do 11 de Setembro. Difere, este tema dos demais e anteriores, o fato de que o cadáver permanece quente, de que falta distância cronológica suficiente para o diretor pintar e bordar. Assim, prevalece uma certa insegurança pela análise moral completa e a inclinação na direção de uma isonomia emocional.

Todos são iguais no sofrimento. Stone retrata o trauma nacional (e mundial, por que não?) a partir de uma dupla de policiais (Nicolas Cage e Michael Peña) chamados para ajudar a socorrer os feridos depois do impacto do primeiro avião aos edifícios gêmeos de Nova York. Enquanto cumprem sua missão, o segundo avião choca-se e encontram-se, os próprios policiais, na condição de vítimas.

Num instante em que se espera do discurso artístico uma escora filosófica, As Torres Gêmeas parece apelar tardiamente para o heroísmo terapêutico. O crítico norte-americano David Walsh repara que o filme de Stone “está devotado ao princípio de explicar nada” e que nele “o mito de uma América em harmonia e nacionalmente unificada permeia-se dentro das imagens e frauda momentos críticos”.

Se parecia inevitável essa aproximação de Stone ao 11 de Setembro, parecia igualmente fatal que o diretor faria do fato histórico palanque para o comício audiovisual de sempre, sobre soberba nacional e sobre um totalitarismo disfarçado de coletividade utópica.

Direto ou indireto – Antes de Oliver Stone, o cinema já havia se tocado sobre a urgência de acomodar o 11 de Setembro no divã. Pouquíssimas semanas antes de As Torres Gêmeas vir a lume, Paul Greengrass deu cria comercial a Vôo 93 (filme também em cartaz em São Paulo). Do mesmo modo que Stone, Greengrass setoriza a tragédia, ao focar sua atenção no vôo que (diziam) seria flechado na direção da Casa Branca e acabou caído na Filadélfia, após um levante dos passageiros e da tripulação contra os terroristas que os mantinham cativos em pleno ar.

A tendência de ir direto ao ponto não é exclusividade de Stone e de Greengrass. Um ano depois dos atentados, saiu 11’09’’01 – 11 de Setembro, filme coletivo que massageava a imaginação de 11 cineastas a partir de um tema único, os atentados de 2001. Os episódios dirigidos pela indiana Mira Nair e pelo mexicano Alejandro González-Iñarritú tocam diretamente no tema. Outros, como Sean Penn, Ken Loach e Samira Makhmalbaf, procuram analogias históricas e visuais para sintonizar sentimentos e sensações que frutificaram a partir dos ataques. E Michael Moore, arlequim que se pinta de documentarista, cita os atentados de forma panfletária em Tiros em Columbine (2002) e em Fahrenheit – 11 de Setembro (2004).

Se as menções diretas ao 11 de Setembro não são ainda tão comuns, as indiretas vêm de longa data. É impossível ignorar a introjeção do evento no ambiente audiovisual/artístico dos últimos anos.

É impossível não enxergá-lo em Homem-Aranha (2002) – que teve amputada uma cena que exibia as duas torres –, particularmente na seqüência em que nova-iorquinos comuns cooperam a favor do herói.

É impossível não percebê-lo como uma nuvem moral que sombreia a série 24 Horas e as aventuras do agente Jack Bauer da segunda temporada (2002) em diante.

É impossível não entendê-lo como fim de um ciclo histórico e reprise de um vício político, conforme acusam os finais de Gangues de Nova York (2002) e de Munique (2005) e como uma necessidade ética do novo século como prega V de Vingança (2005).

É impossível não atribui-lo a uma desgraça inominável, a uma crise moral inimaginável, comparável à chegada do anticristo de tão inacreditável, conforme veicula A Profecia (2006), a refilmagem.

É impossível não admiti-lo como parte (ou conseqüência) de um processo que faz da prestidigitação e da ilusão meios de legitimar um governo, conforme conclui A Vila (2004).

É impossível não senti-lo como uma ausência, como a anulação de uma identidade geográfica, como a corrupção de relacionamentos humanos que comungam de uma cidade, como a implosão de uma estrutura social e política, conforme indicam as mais recentes e contundentes ficções do cineasta Spike Lee, A Última Hora (2002) e O Plano Perfeito (2006).

É impossível, enfim, imaginar que o cinema o deixará de lado tão cedo.



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