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Almodóvar em auto-análise
Por Cássio Gomes Neves
Do Diário do Grande ABC
12/11/2004 | 12:10
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Má Educação, o mais recente trabalho do diretor espanhol Pedro Almodóvar, estréia nesta sexta em São Paulo e em uma sala do ABC Plaza, em Santo André. Não, você não está delirando! É isso mesmo: o circuito de distribuição instalado no Grande ABC, cuja política não costuma ceder a exceções do hegemônico cinema norte-americano, cedeu. E justamente no momento em que Almodóvar revê sua postura como cineasta de ponta entre a comunidade autoral.

Seria ingênuo considerar Má Educação uma autobiografia, no sentido clássico do termo. Mais apropriado seria tomá-lo como "automonografia", na qual o cineasta revê menos sua vida particular e mais os processos criativos e o contexto de uma Espanha pós-franquista que o sustentam como artista.

Ao fim do filme, salta aos olhos um gigante letreiro com a palavra pasión (paixão, em espanhol). Este é o principal tópico do estatuto artístico de Almodóvar. Não só ele filma tudo com paixão, mas tudo sobre pasión. Seus personagens, de Labirinto de Paixões (1982) a Fale com Ela (2002), submetem-se a todo tipo de provações e situações para que seu desejo seja satisfeito. Não se trata necessariamente de amor; a coisa é carnal mesmo, material.

A presença de Ignacio (Gael Garcia Bernal) desencadeia essa busca pela paixão – que acaba sendo a própria busca objetiva do filme. O personagem é um ator e bate à porta de Enrique Gaded (Fele Martínez), diretor de cinema com quem estudou 16 anos atrás, ambos ainda garotos, em um colégio interno dirigido por padres.

A tiracolo, Ignacio – que adotou o nome artístico de Angel Andrade – traz a cópia de um roteiro de cinema que escreveu, chamado La Visita e baseado no passado de ambos no tal colégio. O cineasta Enrique começa a lê-lo. Percebe no papel diante de si a verdade que não consegue enxergar na presença física desse rapaz que afirma ser o amigo de infância. Seu passado reproduz-se com mais fidelidade no texto escrito por Ignacio que na figura que se apresenta como Ignacio. Além de guardar uma situação conclusiva para o filme, essa passagem traz uma tábua de princípios de Almodóvar.

Ao longo de Má Educação, a história do passado de Ignacio e Enrique se entrelaça em flashbacks da infância e nas filmagens do roteiro de La Visita, dirigidas por Enrique e interpretadas por Ignacio, que fez questão de representar a si próprio na tela, principalmente sua fase adulta, quando teria se transformado em um travesti.

Almodóvar estuda, medita sobre a própria obra em Má Educação, uma espécie de "homens à beira de um ataque de nervos". As mulheres, que tanto comparecem a seu cinema, foram apartadas. Somente homens (apaixonados) povoam a ficção: Ignacio que, quando criança, foi seduzido pelo padre que dirigia o colégio e se apaixonou por Enrique e, adulto, planeja vingar-se do pedófilo com extorsões que possam bancar sua operação de mudança de sexo; Enrique, que correspondeu à paixão de Ignacio mas foi expulso do colégio pelo padre enciumado; o diretor da escola, padre Manolo (Daniel Giménez Cacho), incapaz de controlar seus impulsos diante de Ignacio e que o revê anos depois, quando apaixona-se por seu irmão; e Juan, o irmão de Ignacio, o grande mistério da trama.

Almodóvar trabalha seus personagens com empatia e antipatia, devota a eles ora piedade, ora crueldade. São tão coitados quanto vilões, à exceção de Enrique, seu alter ego que busca inspiração para seus filmes nos recortes de páginas policiais dos jornais. A ele cabem a assepsia e a isenção de Almodóvar. Uma figura que assiste aos eventos e, em sua única interferência direta, transporta para o desfecho do roteiro de La Visita o destino que ele acredita ser mais coerente com a trajetória de Ignacio do que o fim que lhe reservava o texto escrito. O espanhol bate na mesa: o cineasta é o caminho da verdade. Sua condição de artista é intuição, é investigação, é memória. E Má Educação é justificativa, é princípio, é reavaliação. Talvez um pouco prematura ao se instalar no meio de uma obra que saiu do esporro pictórico e juvenil de Kika e Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos, nos anos 1980, para o suspiro soturno e maduro de Carne Trêmula e Tudo sobre Minha Mãe, na última década.




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