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Michelângelo e sua lição de anatomia camuflada
Por Alessandro Soares
Do Diário do Grande ABC
02/11/2004 | 10:31
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A Capela Sistina é um dos pontos turísticos mais visitados no Vaticano, em Roma, graças ao apelo religioso da capital da cristandade e ao gênio de Michelangelo Buonarroti (1475-1564), responsável pelos afrescos no teto. Mas um médico e um bioquímico brasileiros descobriram outro apelo para o turismo no local, além da religião e da arte: anatomia humana. As pesquisas de Gilson Barreto e Marcelo Ganzarolli de Oliveira concluem que a genialidade de Michelangelo cruzou o limiar entre o céu e a terra ao retratar o divino em forma humana a 20 metros de altura. Segundo os cientistas, o artista teria recriado a Criação, codificando nas figuras pintadas todo o conhecimento da anatomia humana no século do Renascimento.

Essas conclusões estão em A Arte Secreta de Michelangelo - Uma Lição de Anatomia na Capela Sistina (Arx, 230 págs., R$ 65 em média), uma obra de não-ficção, com fundamentos em história da ciência e da arte. Não se trata de um novo Código da Vinci. No trabalho de Barreto, cirurgião especialista em cabeça e pescoço e conhecedor de arte, e Oliveira, professor de Química da Unicamp, os códigos de Michelangelo aparecem em 32 cenas analisadas.

Contemporâneo de Leonardo da Vinci (1452-1519), Michelangelo foi um ícone do Renascimento, período de entrada da sociedade ocidental na Era Moderna, do avanço do conhecimento científico e artístico, e da derrocada da religião como centro de todas as respostas e do homem como centro e medida de todas as coisas. O berço do renascer artístico foi Florença, na Itália, terra de Michelangelo, provável adepto do mecanicismo moderno - tese segundo a qual o mundo é uma máquina e o conhecimento verdadeiro é o conhecimento das leis que regem o seu funcionamento. Para descobrir o mundo, por que não experimentar construí-lo, como fizera Deus?

Michelangelo mostrou seu conhecimento de dissecação humana em esculturas como Moisés e Pietá. Dizia que apenas tirava o excesso de mármore das figuras. Bem recomendado, foi contratado pelo papa Julio II para pintar inicialmente cenas com os 12 apóstolos na capela. Michelangelo aceitou a contragosto - pois não se considerava pintor - e decidiu ir além do combinado, reproduzindo a Criação, cenas do Velho Testamento, sibilas (profetisas da mitologia greco-romana) e profetas da Bíblia. Sua preocupação era como retratar amplamente a criação divina, o corpo por fora e por dentro.

Segundo os autores, Michelangelo teria camuflado nos afrescos o seu conhecimento da anatomia humana. Órgãos e partes do corpo humano foram representados em temas (cenas da Criação no teto), em cenas laterais do Velho Testamento (nas quais figuras apontam o órgão ou parte do corpo representado) e no panejamento das figuras laterais, sibilas e profetas, intermediários do Divino com os homens. Ciência e arte comunicando-se com o Criador.

O código de Michelangelo apareceria de forma pictórica ou iconográfica. Dentro da cena, recomendam os autores, devem ser observados o movimento das mãos que apontam a peça anatômica oculta, a direção dos olhares, a região do corpo em que há maior luminosidade e a posição das figuras - que expõem a parte do corpo camuflada na maioria dos casos nas dobras das vestimentas, cujos desenhos eram feitos antes e a figura humana aplicada depois. Os adornos das cenas também merecem observação. As correlações podem não ocorrer de imediato para leigos ou parecer exagero dos autores, mas esse jogo de investigação para decifrar um enigma não deixa de ser divertido.

Se até Zagallo vê 13 em tudo, por que não ver ciência na arte de Michelangelo? Antes dos livros de códigos secretos em arte, Umberto Eco vaticinou, em O Pêndulo de Foucault (1988), que o maior segredo é não haver segredo algum a esconder.




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