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Tarantino volta com Kill Bill
Por Cássio Gomes Neves
Do Diário do Grande ABC
23/04/2004 | 12:08
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Mente o cinéfilo que afirme não ter se ouriçado todo quando Quentin Tarantino deixou o limbo onde exilara-se desde Jackie Brown (1997) para filmar o projeto Kill Bill. A nova obra, tão aguardada quanto um eclipse solar, foi concebida como um presente para o 30º aniversário da atriz Uma Thurman, de Pulp Fiction (1994). O papel principal foi escrito exclusivamente para ela – e não é que a sujeita engravidou no meio da pré-produção. Tarantino foi peremptório: sem Uma, Kill Bill não sai do protocolo. O filme foi então arquivado durante dois anos, até que a atriz tivesse plenas condições de retomar o papel, e eis que, dez anos depois de idealizado, Kill Bill – Volume 1 estréia nesta sexta no Brasil, em cinco salas do Grande ABC.

A estréia desta sexta precede Kill Bill – Volume 2, a parte final lançada semana passada nos Estados Unidos e prometida para o Brasil em outubro. A princípio, deveria ser um longa-metragem só, mas a quantidade de material filmado forçou Tarantino e o produtor Harvey Weinstein, da Miramax, a decidir por duas partes.

Feitas as apresentações, falemos do filme em si. Kill Bill – Volume 1 traz Uma Thurman como a protagonista atacada durante a cerimônia de seu casamento, por uma organização de assassinos profissionais chamada Divas. A noiva, grávida, é egressa da ordem de mercenários que mata oito dos convidados, além da filha ainda no ventre da dita cuja que, por incompetência dos antigos colegas de profissão, sobrevive internada em coma durante quatro anos. Ao acordar, seu objetivo passa a ser a eliminação dos que tentaram dar cabo dela: O-Ren Ishii (Lucy Liu), Vernita Green (Vivica A. Fox), Ellen Driver (Daryl Hannah), Budd (Michael Madsen) e Bill (David Carradine).

O enredo é banal assim. Nas mangas, entretanto, Tarantino guarda truques e chistes. Reserva um deles à questão da identidade, tanto à do personagem de Uma quanto à de Bill. Ela é denominada Mamba Negra (o codinome que usava quando assassina profissional) ou simplesmente A Noiva. Em determinada seqüência, quando aparentemente profere o próprio nome, o cineasta encobre a sentença com o zumbido tipicamente empregado para disfarçar palavrões e injúrias em reality shows. Quanto ao antagonista Bill, sua presença é ilustrada somente por detalhes, como um par de sapatos ou uma mão a segurar uma espada.

É aqui que reside o principal desafio de Tarantino, que se interpõe entre a originalidade e a vulgaridade. Alça a tal tarefa ao produzir uma vertigem intertextual com a soma de inúmeras referências, especialmente a filmes asiáticos de artes marciais dos anos 70 como as produções dos estúdios Shaw Brothers e os seriados estrelados por Bruce Lee. Dois exemplos: a indumentária amarela com listra preta que A Noiva usa no episódio da vendeta contra O-Ren Ishii remete ao figurino do filme O Jogo da Morte, com Lee; e as máscaras utilizadas pelos 88 Loucos, a gangue de O-Ren, são clara referência ao disfarce de Kato, personagem da série O Besouro Verde, também com o astro chinês. Tarantino chega a usar uma seqüência de anime (desenho japonês) e a elencar Sonny Chiba, ator de filmes populares no Japão, para o papel de Hattori Hanzo, o mestre ferreiro a quem A Noiva pede uma espada especialmente forjada para matar Bill.

O excesso pauta o trabalho de Tarantino, que une tantas alusões asiáticas a suas demais referências anteriores (e declaradas), de Sérgio Leone a Sam Peckinpah, passando por John Frankenheimer e Takeshi Kitano. Além dessa caldeirada de influências, o diretor trabalha com a não-linearidade e submete o tempo a sua própria vontade ao desafiar a ordem cronológica dos acontecimentos. Em Tarantino, o excesso move-se para chegar à honestidade – não há vergonha de sua parte em assumir que seu cinema é recriação, é o ensimesmamento visual retrabalhado.

Essa coleção de cúmulos, farta e orgástica, não repele o espectador desacostumado ao repertório de referências do diretor. Tudo porque Tarantino injeta espontaneidade ao fazer de Kill Bill – Volume 1 uma exaltação à mulher. Neste primeiro filme, os duelos principais de A Noiva são contra duas inimigas, Vernita e O-Ren, a última guardada também por mulheres. A fêmea assume uma posição de castração do homem e a espada se transforma em símbolo fálico e em extensão postiça do poder feminino. Não é à toa que genitálias masculinas são simbolicamente emasculadas quando espadas são partidas, que homens e suas pélvis são ora retratados como objetos de entretenimento sexual e aspirantes a Don Juan têm o “instrumento” explodido. Nessa escalada da mulher rumo ao poder (político e fisiológico), cabeças rolam como bolas de gude e sangue jorra dos corpos como se expelido por um chafariz de alta pressão. Que o excesso, entre o nauseante e o satírico, tenha igualmente uma causa tão nobre quanto esta em Kill Bill – Volume 2.




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