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‘Chuveirinho’ faz da rua seu picadeiro
Por Illenia Negrin
Do Diário do Grande ABC
22/04/2007 | 07:06
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Respeitável público! Com vocês o incrível, o audacioso, o inigualável Príncipe dos Ares!

E todas as luzes sob a lona, de repente, se apagavam. Um único farolete de luz se acendia, virado lá para cima. A platéia, muda, esperava o artista de roupa brilhante atravessar a corda-bamba.

Sustentado por olhares imóveis de uma apreensão quase ingênua - ou quase fingida, já que no fundo sabia-se que o homem-pássaro chegaria do outro lado -, o equilibrista caminhava pelo arame, ao mesmo tempo em que manipulava bastões e bolinhas coloridas.

Estava a poucos minutos da glória, mas não podia precisar: o relógio havia congelado, que nem a força da gravidade. Aproveitava a pane no tempo para andar a seis metros de altura e alcançar a plataforma, o enxame de aplausos. Ao firmar os dois pés e baixar os braços, lembrava-se pela enésima vez de que não tinha asas.

Era viciado em frio na barriga. Vinte e cinco anos de circo e ainda cultivava a modesta ansiedade, o sorriso rasgado de quem tinha certeza: era um dos poucos.

Quando desceu da corda, o Príncipe dos Ares correu para o camarim. Veterano, rápido cobriu o rosto com Minâncora, pintou a parte de cima das bochechas de vermelho, vestiu peruca, nariz, roupa larga, sapato engraçado. Eis o Palhaço Chuveirinho. Da coxia, fumava tranqüilamente seu cigarro antes de ser anunciado.

Nem o Príncipe dos Ares, nem o Chuveirinho, nem o respeitável - e escasso - público sabiam. Mas aquela era a última vez que Francisco de Oliveira Macedo se exibia no picadeiro. O circo, falido, não dava pão para mais ninguém. O dono baixou a lona no Parque João Ramalho. E nunca mais a ergueu.

– Carissíssimas e dignissíssimas famílias! Olha que eu tô chegando! Aceito jornal, plástico, ferro, papelão. Se não tiver reciclável, não tem problema. Pode jogar tua televisão que eu pego mesmo assim. Mas só se for a cores. E com controle remoto. Pego de tudo, menos a sua sogra.

Príncipe dos Ares e Chuveirinho haveriam de ser maiores que o picadeiro. Quando perdeu o emprego no circo, Macedo não sabia fazer outra coisa que não palhaçada e equilibrismo. Tinha 40 anos, esposa e quatro filhos. Desde os 15, quando fugiu de casa com a trupe do Circo Continental, não sabia o que era ter endereço fixo. Abandonou essas e outras formalidades - os estudos, por exemplo - em Santa Cruz do Inharé, Rio Grande do Norte.

Faz quatro anos que, ajudado por amigos, montou barraco num terreno vazio atrás de um de ferro-velho, inaugurando a favela da rua Sorocaba, periferia de Santo André.

Conseguiu um carrinho emprestado. De cara limpa, saiu para puxar carroça, pegar recicláveis e todo o tipo de quinquilharia que se acumula no fundo dos quintais do bairro chique.

O sol queimava, arredio; nada ali tinha sido feito só para ele. Bem diferente viver na estrada que da rua. Morto de vergonha, assumiu palco onde trabalhar sozinho não era sucesso, não era prestígio. Era solitário. Custoso demais viver sem aplauso. E não viveria.

Pé ante pé, como fazia o Príncipe, Chuveirinho começou a percorrer o Parque Jaçatuba. Logo ganhou platéia.

– Sucateeeeeeeeroooooo !

As donas de casa saem à porta, de sacolinhas, quando ouvem o grito. As crianças riem um riso nervoso quando ele se aproxima, porque sabem o segredo. O palhaço está fantasiado de catador de sucata, vê se pode.

O Heitor, 2 anos, neto da dona Lurdes Cavarzan, corre para ver o sucateiro. “Toda vez é assim. Ele adora.”

O povo acha que ser palhaço é só pintar a cara, explica Chuveirinho. Mas tem que ter classe.

– Sai pra lá, seu filho duma tripa!

Chuveirinho não gosta de vaia e fala duro quando um motorista apela para o desrespeito, assusta com buzina, diz palavrão para quem puxa carroça. A Avenida dos Estados está cheia de gente assim, à toa. "Não tenho do que me envergonhar. Faço um trabalho honesto, sustento minhas crianças. Outro dia fui atropelado. Graças a Deus, não me machuquei."

A reclamação não dura nem 15 segundos. Primeiro porque ele é homem de palavra desembestada. E porque o sorriso foi tatuado no rosto, um pouco judiado pelo esforço e pela vida nômade. "Sou feio. Mas estou na moda."

- Sucateeeeeeeeroooooo!

Recebe um punhado de jornal, um tanto de garrafas PET. Abençoa as ruas, as doações. Jura que, de todas as vias, aquela é a sua preferida, a que concentra as famílias mais generosas da vizinhança. Grita, grita, grita. E canta, como canta.

Quando era criança, Chuveirinho sem querer engoliu um radinho de pilha. Deu no que deu. Guiando a carroça, inventou outros personagens. Zeca Sucatinho é primo do sambista Zeca Pagodinho, e faz paródia com as músicas do parente. "Você sabe o que é caviar? Nunca vi, nem comi, eu só ouço falar. Só sei o que é sucata velha. Que eu já vi, já conheço e costumo pegar."

– Aaaaauu!

É com o bordão do forrozeiro Frank Aguiar que encerra todas as músicas. É a deixa para a próxima. A mais pedida pelo público - é, as pessoas pedem - vem do estilo sertanejo. Bruno e Marrone, na Cadeia. "Amor, tô te ligando aqui do cadeião. Já teve fuga e rebelião...Aaaaauu."

O carrinho vai enchendo. Em data boa, consegue R$ 30 por viagem, umas quatro horas de trabalho. Em dia sensacional, recolhe muito alumínio e passa dos R$ 40. Naquela quinta-feira precisava ganhar exatos R$ 32. Um dos filhos tinha excursão da escola no dia seguinte.

Do estudo pros meninos ele faz questão. Absoluta. Luana, 16, Letícia, 13, Luan,11, Larissa, 8, João Lucas, 4: os cinco vão ter emprego bom, com computador. Nas horas livres, que façam o que quiser. Luan é o palhaço Torneirinha; Lucas, o Chuvisquinho; o caçula imita ganso, uma belezinha.

O trio às vezes se apresenta em escolas, tudo arranjado por um malabarista ex-companheiro de circo, que mora em São Bernardo.

– Olha eu aqui íí !

O Jaçatuba é grande, rapaz. Não era possível que bem naquela quinta-feira o povo não se animaria a liberar a sucataiada. Olha para a carroça, cheia. Chuveirinho não se empolgava muito: os 200 quilos que vai empurrando de volta pro ferro-velho devem render, no máximo...Faz as contas. Uns R$ 20. Fora a cesta-básica, comemoradíssima.

Parecer mal-agradecido, jamais. Pelo amor de Deus, que ganhou muita coisa no bairro. “No meu primeiro dia, me deram uma geladeira novinha. Já ganhei até DVD. Tá pensando o que? Chuveirinho não é fraco, não. Aaaaauu.”

– Manda uma tubaína aí que hoje eu sou celebridade.

Chuveirinho pára num boteco amigo, faz pirueta e bebe refrigerante. Dois reais, pendura aí na minha conta. Daqui uns anos, ele quer voltar pro Nordeste. Só vai se tiver mais do que uma mão na frente e outra atrás. Vai abrir um comércio, estudou até a 4ª série mas é bom em Matemática. Ninguém me passa a perna.

Imagina que, na frente do estabelecimento, vai montar um palquinho. Chuveirinho, Torneirinha e Chuvisquinho serão os astros de Santa Cruz do Inharé.

Mas só de brincadeira. Não quer pros meninos a vida que leva. Pela primeira vez em quatro horas e meia, faz uma pausa na fala. A rotina é sofrida. Mas olhe, não sou só burro de carga, não. Eu canto, me comunico.

Chegou a ganhar 10 salários mínimos por mês para andar 10 minutos sobre o arame e ficar mais 15 no picadeiro. A renda como sucateiro não chega aos R$ 700.

No ferro-velho, começa a depenar a carroça. Separa, pesa, o riso está quase sumindo. Quase. “Macedo, deu R$ 20” avisa o dono.

Ele amassa as notas e enfia no bolso.

Ainda bem que passa o circo, passa o asfalto, passa o aperto. De definitivo, só o palhaço. Chuveirinho vai ser enterrado com a roupa que mais lhe caiu bem em vida, a mortalha do riso.

– Será que a mulé vai brigar por causa dos R$ 32? Vocês é que são ruins demais da conta. Dormir no sofá é que é palhaçada.



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