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Sem controle

Eram três: dois grandes e um pequeno...

Por Carlos Ferrari
02/02/2015 | 07:00
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Eram três: dois grandes e um pequeno. Mas, frente à minha quase inoperância diante daqueles aparelhinhos, decidi contar os botões. Oiteita e cinco ao todo, porém, a funcionalidade para mim, naquele momento, era bem distinta das reais possibilidades daqueles controles remotos que, em tese, seriam da TV, do ar condicionado e da operadora de serviço de cabo. Geralmente isso não acontece, pois sempre que chego a um hotel já costumo – me antecipando a um total despreparo dos funcionários para acolhimento de pessoas com deficiência – pedir para que me apontem ao menos como fazer para ligar o ar, desligar a televisão, mudar de canal e, claro, me falar onde deixarão meus chinelos ao fim do dia para quando eu retornar do trabalho.

É óbvio que isso não é uma regra e, felizmente, já tive boas surpresas com profissionais proativos, portadores de uma fala previamente preparada e cheia de indicações sobre o local das toalhas, os controles remotos e outros tais. Mas voltando ao título dessa coluna, no dia em que me percebi de mãos atadas diante daquele trio projetado para permitir controle à distância das coisas, me senti provocado a escrever pois, ainda perplexo com a inutilidade deles naquela ocasião, comecei a refletir sobre a possibilidade real de não só um cego viver aquele sentimento. Façam uma pesquisa com pais, tios, avós, enfim, perguntem aos colegas de trabalho, ao taxista e à dona Maria lá da feira quantas das funções ou botões dos muitos controles remotos que existem em suas casas eles sabem ou já viram ser usadas por alguém. A abundância de possibilidades geralmente assusta e dá ao usuário a sensação de um possível erro que, na verdade, inibe a concretização de uma experiência completa no acesso aos caros equipamentos que as pessoas desejaram tanto antes de comprar.

Novamente preciso reafirmar que não estou aqui dialogando com uma regra, visto que mesmo em minha casa tenho eletroeletrônicos cujo controle remoto tem apenas três botões, porém com inúmeras funcionalidades e grande nível de indução intuitiva, ou seja, dá para se usar sem ler qualquer manual. Para que tenham uma ideia, o equipamento ao qual me refiro é utilizado com plenitude por minha filha de 4 anos e por meus pais que já passaram dos 60. Contudo, o problema de usabilidade parece que infelizmente não tem tirado o sono de empresas e desenvolvedores de produtos. Pensar em soluções com acessibilidade, interfaces intuitivas e recursos alinhados com a diversidade etária e cultural é posicionamento vanguardista de mercado, e claro, passa pela decisão estratégica de qualquer negócio.

Vejam um outro exemplo: atualmente utilizo, como a maioria das pessoas cegas, um smartphone com tela touch sem qualquer dificuldade, ou seja, autonomia total. Isto porque uma empresa decidiu investir em pesquisa e fazer produtos verdadeiramente úteis para todos. Mas seguindo na linha do touch, recentemente tive o desprazer de conhecer máquinas touchscreen de uma operadora de cartão de crédito. Neste caso eles desconsideraram os milhões de consumidores cegos, nos deixando vulneráveis ao descobrir que só podemos utilizar sua maquininha mediante a condição de dizer a senha para alguém. Como dizem meus amigos cariocas, “sinistro não”?

Precisamos gritar e nos indignar diante das engenhocas e soluções de mercado que nos deixam sem controle. Pagamos pelo todo e usamos apenas uma parte, pois o produto, ao fim, não se viabiliza.

À propósito, fica o convite: deixem um post no meu blog ou um comentário na minha página no Facebook sobre as suas experiências ao tentar usar algum produto ou serviço que lhe deixaram ‘sem controle’. Vocês vão perceber que o que estou dizendo é bem mais comum do que se imagina. 

* Carlos Ferrari é presidente da Avape (Associação para Valorização de Pessoas com Deficiência), faz parte da diretoria executiva da ONCB (Organização Nacional de Cegos do Brasil) e é atual integrante do CNS (Conselho Nacional de Saúde).




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