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De carona com a arte

Raymundo Dias, taxista no Grande ABC, recita poesias para seus passageiros

Richard Molina
Especial para o Diário
09/06/2019 | 07:00
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Denis Maciel/DGABC


O anonimato esconde muitos artistas, pessoas comuns que possuem algum talento não divulgado, às vezes por timidez, outras por comodidade com a vida que levam. Ou simplesmente por opção. Mas quando se tem amor pela arte, este fator não é empecilho para um talento romper as barreiras subjetivas e ganhar o mundo.

Raymundo Dias, 62, taxista de São Bernardo há 27 anos – 18 no mesmo ponto –, que nos diga. Ele tem um dom: o de transformar versos em poesia e esta em música. Enquanto faz corridas pelo Grande ABC, ele recita poemas para quem gosta de ouvi-los. Os textos, de sua autoria e também da mulher, Gilda Sabas, viraram canções gravadas em CD que leva no carro, as quais ele mostra, orgulhoso, para os clientes apreciarem.

“Eu e a minha esposa respiramos arte”, conta. “Fiz uma música para ela, chama Curva da Ladeira. As componho no carro. Vou anotando, criando a melodia, depois coloco o violão. É bem precário.”

Natural de Itagibá, Sul da Bahia, Raymundo não se acanha, gosta de falar e disseminar arte a cada frase. “Morava na roça, zona da mata. Era muito distante da cidade. Éramos dez filhos e quando meu pai ia para lá, ele levava os maiores. Os menores não aguentavam a viagem. Eram três dias para ir e três para voltar e pegar mantimentos. Mas era uma época boa, não tínhamos dono”, lembra.

O taxista contou que quando a família terminou de desmatar aquela terra, o fazendeiro que os abrigava mandou-os embora, já perto da ditadura militar. “Foi aí que conheci a civilização”, relata. “Meus irmãos mais velhos falavam que viam carros e a gente morria de curiosidade.” Raymundo e sua família foram primeiro parar em um vilarejo vizinho em Ipiaú, onde trabalhavam com cacau. “Aí foi penúria. Tinha 10, 11 anos. Conheci muito o trabalho braçal.”

Vieram para São Paulo já no meio da década de 1970. “Ainda não se ouvia forró aqui. Começaram a vir com Elba Ramalho, Alceu Valença, mas era muito internacional, Londres, Beatles. Não tinha espaço para os versos que a gente cantava lá perto das aldeias.” Raymundo foi buscar em Diadema um pouco da cultura que gostava. Foi lá também que conheceu a mulher, Gilda. “Ela era índia, da tribo dos Pankarás em Pernambuco, e já escrevia. Me disse: ‘Você quer colocar música nas minhas poesias?’”, recorda. Deu em casamento.

Conversando, é comum que ele interrompa um raciocínio e comece a citar um poema que o assunto lhe lembrou, seja de autoria própria, da mulher ou de seus grandes ídolos, os cordelistas Elomar e Xangai. Para saber com quem colocar toda a sua arte para fora, ele diz que é fácil. “A pessoa quando sabe dar valor à cultura, a gente vai conversando e eu percebo. Tem um inglês que morava aqui perto que pegava o meu táxi exatamente por isso. Uma vez estava ouvindo aqui Elza Soares na Rádio Cultura AM, a minha predileta. E o cara ficou doido.”

Raymundo não quer ser famoso, e as suas gravações são caseiras, no celular mesmo. Gosta do convívio simples, de compor com Gilda e de compartilhar seu espólio com quem quiser apurar os ouvidos. “Vejo que poucas pessoas aqui hoje gostam de arte. Que não é o meu caso, né? Vagalume na escuridão.” 

Curva da Ladeira

Na curva da ladeira fiz o meu jardim

São tantas flores belas, tem flor de jasmim

Tem jabuticabeira, lima e passarim

E uma fulô morena linda só pra mim. 

Lá tem flor de feijão, não tem flor de algodão

Lá tem pé de romã, não tem pé de maçã 

Mas tem flor de tangerina, tem meninos e meninas. 

Lá tem flor de andu, não tem flor de caju

Lá tem pé de morango, não tem pé de mangalô

Mas tem um passarinho, um morceguinho e um beija-flor 

Na curva da ladeira fiz o meu jardim.




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