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Estudantes ignoram quem foi Vlado
Por Danilo Angrimani
Do Diário do Grande ABC
09/10/2005 | 08:21
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Escola Estadual de Primeiro e Segundo Graus Jornalista Vladimir Herzog, em São Bernardo. São 18h20 de um dia qualquer da semana. Os portões se abrem e os alunos saem do prédio naquela algazarra característica de fim de aula. Têm entre 11 e 17 anos.

Eles topam com uma pessoa com um bloco de papel na mão que lhes faz uma única pergunta, como se fosse uma pesquisa: “Quem foi Vladimir Herzog?”

A expressão dos alunos é de quem nunca ouvira falar naquele nome, apesar de batizar a própria escola onde eles estudam e passam a maior parte do dia. “Agora você me pegou.”

De 20 alunos consultados, apenas um sabia que o jornalista Vladimir Herzog, o Vlado, tinha sido morto. Mesmo assim, não conseguiu explicar por quê. Nada surpreendente para um país desmemoriado e de ensino precário.

Fenômeno que certamente deveria preocupar o próprio Vladimir Herzog, quando entrou naquele sábado, 25 de outubro de 1975, nas dependências do prédio cinzento do Doi-Codi (órgão da segurança do 2º Exército). Vlado havia feito um curso, em Londres, na rede de televisão estatal BBC da Inglaterra. Tinha muitos planos para pôr em prática, quando foi contratado pela TV Cultura.

Vênus Platinada – O telejornal que ele e seus colegas produziam procurava mostrar a realidade brasileira, algo inédito e chocante em um tempo em que a Vênus Platinada, como se apelidava a Rede Globo na época, fazia o contrário: mostrava “o país que vai pra frente” sob o comando dos militares.

O Brasil da Rede Globo era colorido, rico, fraterno, “cheio de pujança”, como se dizia. Já o telejornal da TV Cultura retratava uma atmosfera oprimida, cinzenta, não-maquiada e característica dos “anos de chumbo” da ditadura.

Vlado achava que estava no caminho certo e não tinha com o que se preocupar, quando cruzou a porta do prédio da rua Thomaz Carvalhal, esquina com a Tutóia, na zona Sul de São Paulo. Era uma apresentação espontânea. Ele iria depor para dissipar eventuais equívocos. Antes de sair de casa, tranqüilizou a mulher Clarice: “Não tenho nada a temer”.

Vlado, que tinha dois filhos pequenos, não imaginava que estava em curso uma tentativa de golpe dentro do golpe. Os setores mais duros do regime militar tentavam derrubar o então governador Paulo Egydio Martins e o presidente-general Ernesto Geisel, que sustentava “a abertura lenta, gradual e segura”. Como diria mais tarde um colega de Vlado, o também jornalista Rodolfo Konder: “Havia uma briga de elefantes e nós éramos a grama”.

No prédio do Doi-Codi já estavam presos os jornalistas Paulo Sérgio Markun, Anthony Jorge Andrade Cristo, George Benigno Jatahy Duque Estrada e Rodolfo Oswaldo Konder.

O que se seguiu fez o Brasil descer um degrau na escala do processo civilizatório. Vlado foi despido e obrigado a trajar um macacão verde. Colocaram-lhe um capuz preto de tecido barato em sua cabeça. Teve início um interrogatório sob tortura.

Pimentinha – Ele levou choques pelo corpo, aplicados com o uso de uma máquina apelidada de pimentinha. As descargas elétricas atingiram orelha, pênis, ânus, boca. Atiraram uma substância à base de amoníaco no capuz. Com a carga de choques, a respiração torna-se difícil, agravada ainda mais pelo amoníaco e a pressão que o torturador lhe fazia com um objeto contundente.

A tortura deve ter se prolongado por duas horas. Konder, que estava na sala ao lado, deu um depoimento ao filme Vlado – 30 anos Depois, em que relata os últimos momentos da vida de seu colega. “Ele gritava muito, mas com os choques elétricos os próprios gritos ficavam alterados. A respiração foi se tornando abafada, como se tivesse sido amordaçado.”

Os torturadores haviam ligado o rádio no último volume. “Lembro que uma das notícias falava que o generalíssimo Franco (ditador espanhol) tinha recebido a extrema-unção”, contou Konder no filme.

A respiração de Vlado foi falhando, falhando. Os gritos cessaram, até se fazer um silêncio absoluto. “Até o rádio tinha sido desligado.” Os jornalistas foram levados para o andar de cima e obrigados a reconhecer supostos comunistas em antigas fotografias. Depois, liberados. Vlado estava morto.

Os militares tentaram forjar um suposto suicídio. O corpo de Vlado foi fotografado com as pernas dobradas, o pescoço preso por um cinto, a 1m63 do solo (Vlado media 1m70). O laudo da perícia, divulgado pelo 2º Exército, mencionava “suicídio” como causa da morte. O documento era assinado pelos legistas Harry Shibata e Arildo de Toledo Viana.

Três anos depois, em sentença histórica, o juiz Mário José de Morais, da Justiça Federal de São Paulo, desmontava a versão oficial e condenava a União pela prisão ilegal, tortura e morte de Vladimir Herzog. A sentença representava a vitória da viúva Clarice Herzog que, inconformada com a tese de suicídio, procurou a Justiça e conseguiu derrotar o governo, os órgãos de segurança e a ditadura.

O corpo de Vlado repousa hoje na rua Yehudá, quadra 28, sepultura 64 do Cemitério Israelita de São Paulo. Entre ciprestes, longos trechos de gramado, dracenas vermelhas e bem-te-vis, o túmulo em mármore preto traz a data de nascimento (27/6/1937) e da morte (25/10/1975) de Vlado, além de uma inscrição em letras de bronze, que diz: “Quando perdemos a capacidade de nos indignarmos ante atrocidades sofridas por outros, perdemos também o direito de nos considerarmos seres humanos civilizados”.

Sem memória – Essa história – tão próxima de nós e tão recente – parece nunca ter sido contada nas escolas. “Quem foi Vladimir Herzog?” Respondem os alunos da EEPG Jornalista Vladimir Herzog:

Giovana Barros, 12 anos, 6ª série – “Foi um jornalista. Não sei mais nada. Algo assim com a ditadura militar, mas não sei o que é”. Sabrina Setta, 11 anos, 5ª série: “Você me pegou. Não sei. Acho que era um jornalista que passava na televisão”. Júlio Silva, 14 anos, 5ª série: “Não sei”. Janaína Nepomuceno, 17 anos, 8ª série : “Não sei”.

Também Daiana Aires, 15 anos, 8ª série , nada sabe sobre o jornalista: “Não sei. Já ouvi falar, mas não lembro”. Alonso Lima, 15 anos, 7ª série, ao menos acerta a profissão de Vlado: “Foi um jornalista. Dizem que ele se suicidou”. Tiago Silva, 15 anos, 7ª série, crava: “Era um jornalista, mas é só o que eu sei”.

A pequena Evelyn Mello, 12 anos, aluna da 6ª série, vai um pouco além: “Foi um jornalista executado, não sei por quê”.  Lucas Primitz, 12 anos, 6ª série, demonstra não ter prestado muita atenção à aula. “A professora falou alguma coisa, mas não me lembro”. 




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