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A varanda
Por Rodolfo de Souza
24/02/2022 | 00:01
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Começa a chover, e a moça caminha inquieta pela varanda. Seus nervos afloram à flor da pele quando percebe, no caminhar incessante dos minutos, a intenção nenhuma da tormenta em dar uma trégua, um alívio que possa conter o medo que habita os corações de quem já desconfia que a morte ronda.

O longo tempo morando em ponto alto da região já possibilitou à moça assistir a um sem fim de deslizamentos ameaçadores. Mas naquele momento, ela está mais apreensiva do que jamais esteve, qualquer coisa mais propensa a acreditar no pior.

Ela se aflige, mesmo com toda a gratidão que carrega pelo privilégio de não habitar as beiradas do barranco, lugares que abrigam toscas colunas de concreto e tijolos, dispostos em terreno frágil que, certamente, não lhes dará suporte quando a água vier. E é pela varanda de sua casa que ela observa, e seu pensamento não consegue seguir noutra direção; somente aquela gente com suas casas penduradas na encosta de terra, que começa a se diluir, lhe é objeto de atenção naquele momento. Pede, religiosa que é, que o bom Deus não permita um deslizamento, que detenha a fúria do aguaceiro pelo bem daquela gente toda, que, sem alternativa, sempre elege o morro como refúgio barato, acreditando que a mãe natureza lhe poupará, e os seus.

A moça chega mesmo a considerar a possibilidade de deixar a varanda e livrar seu peito do sufoco de tamanha inquietação. Talvez até pare de chover, afinal.

Mas a precipitação não cessa. Sequer diminui de intensidade, e a névoa grossa também faz marejar os olhos daquela que já começa a perceber aqui e ali trechos da encosta se deslocando, carregando para baixo árvores, casas e pessoas.

A moça encontra-se estática. Sua solidão lhe é companheira no testemunho de uma tragédia, como tantas que acontecem em terra em que o povo é abandonado pelos governantes. Poder este que certamente culpará a natureza pela morte dos mais fragilizados, daqueles para quem não há defesa, somente dor. E as lágrimas demorarão uma eternidade para secar, período em que outros temporais virão. É possível até que tragam mais lágrimas, sucessivas lágrimas. Tudo enquanto a gente humilde espera e se desespera.

E a cortina de água a escorrer do céu e dos olhos da moça confundem as imagens. Ainda assim, a gritaria de pânico permeia a sua imaginação enquanto os imóveis são engolidos pela lama, bem diante dela, que não consegue se livrar do sentimento de impotência. É tão somente mera expectadora do destino de dezenas, talvez centenas de pessoas iguais a ela.

No chão, o leito da enorme enxurrada carrega veículos e tudo o que encontra pela frente. As pessoas se agarram ao que é possível se agarrar, normalmente nada. E a fúria da água não pede passagem, passa.

Repentinamente, algumas indagações surgem para potencializar o conflito em que se transformou a sua mente: em qual daquelas casas destruídas pela chuva funcionava a prefeitura da cidade; em qual daquelas casas, agora amontoados de escombros, morava o prefeito; qual daquelas casas era residência de veraneio do governador… em qual daquelas casas estava escondido o dinheiro, cujo destino era livrar aquela gente da tragédia, mas que fora sorrateiramente desviado pelo meliante oficial?

Rodolfo de Souza nasceu e mora em Santo André. É professor e autor do blog cafeecronicas.com




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