Política Titulo 60 anos em entrevistas
‘Intolerância é ensinada e apreendida’
Bia Moço
Especial para o Diário
11/04/2018 | 07:00
Compartilhar notícia
Denis Maciel/DGABC


Presidente da Federação Umbandista do Grande ABC, Ronaldo Antônio Linares, ou apenas Pai Ronaldo, 83 anos, nasceu no bairro do Cambuci, na Capital, e desde 1958 vive no Grande ABC. Primeiro em São Caetano, depois em Santo André, onde está até hoje. Criador do Santuário Nacional da Umbanda, que ocupa área de 645 mil m² na Estrada do Montanhão, ele diz que a preocupação era ter um espaço para que os adeptos possam fazer suas oferendas sem importunar, mas também para que não sejam importunados. Pai Ronaldo luta para acabar com a intolerância, que só existe “porque é ensinada e apreendida”.

Ronaldo Antônio Linares e o Diário
Como presidente da Federação Umbandista do Grande ABC, Ronaldo Antônio Linares tem participado de grupo que reúne lideranças de diversos segmentos religiosos da região que luta para acabar com todas as formas de discriminação e intolerância.

Ele avalia que o Diário tem papel fundamental nessas ações, porque é “uma publicação séria, de amplo alcance”, que pode ajudar a envolver a sociedade. Pai Ronaldo lembra que começou a acompanhar o Diário quando ainda era News Seller, e que a primeira reportagem do jornal a seu respeito foi em 1981, quando da inauguração do santuário.

Onde o senhor nasceu, e quando? Caso não tenha sido no Grande ABC, em que ano chegou à região e o que lhe trouxe para cá?
Nasci em São Paulo, no bairro do Cambuci, em novembro de 1935. Cheguei ao Grande ABC em 1958.

Como o Grande ABC acolheu o senhor e sua família? Em que cidade se estabeleceram?
Em 1958, após desposar uma jovem nascida e criada em São Caetano, indo residir no bairro Santa Paula.

Qual sua formação e por quais escolas passou?
Minha formação profissional foi na área da Saúde. Sou radiologista e trabalhei junto ao professor da USP Afonso Maron – Hospital Cruz Azul –, na seção de Assistência Social (Serviço Social de Saúde). Atuei como diretor técnico do Centro Médico de Raios X. Cursei a Escola Superior de Guerra.

Sempre morou na mesma cidade na região, ou passou por outras?
Residi em São Caetano por mais cinco anos e mudei para Santo André, onde resido até hoje.

O senhor sempre foi da umbanda?
Não. Fui educado, como quase todos os descendentes europeus, dentro da Igreja Católica. Ainda criança tive um primeiro contato com o espiritismo. Posteriormente, residindo no Rio de Janeiro, quando conheci o candomblé e, só depois, a umbanda.

Há quanto tempo existe o Santuário Nacional da Umbanda em São Bernardo?
O Santuário Nacional da Umbanda foi criado na administração Lincoln Grillo, todavia, há mais ou menos 48 anos já utilizávamos o espaço, onde anteriormente funcionava a Pedreira Montanhão, para a prática de cultos afro-brasileiros.

De quem foi a ideia de construir o santuário? Quem escolheu o local e como ele foi construído?
Idealizei o santuário ao constatar que praticantes dos cultos de matrizes africanas não dispunham de nenhum lugar onde pudessem realizar suas práticas religiosas sem importunar e, principalmente, sem serem importunados. Quando a umbanda começou a se popularizar na Grande São Paulo as pessoas se consultavam com entidades espirituais e recebiam, invariavelmente, a incumbência de ofertar algo junto à mata, tomavam o trem e desciam em Paranapiacaba à procura de uma clareira, usando trilhas de palmiteiros, pescadores ou caçadores. Como não há clareiras na Mata Atlântica, derrubavam uma pequena área para fazer sua oferenda e nunca mais voltavam para reparar o dano à natureza. Algum tempo depois, outra pessoa receberia uma incumbência similar e, chegando à mesma trilha e encontrando os restos de oferenda anterior, pensaria que o local era bom – mas sujo, então faria uma nova clareira para sua própria oferenda. Percebi o dano que causávamos à natureza e comecei a pensar o que poderia fazer para evitar que isso continuasse. Foi então que me lembrei da Pedreira que utilizávamos (já inativa) e do local destruído e devastado. Que espaço poderia ser melhor que esse para recuperarmos? Pois quem ajudasse nessa recuperação também aprenderia a importância da preservação da natureza, já que nossa igreja é a própria natureza.

Qual a importância do santuário para os umbandistas da região e até do Brasil?
Há 48 anos escrevi, numa lasca de árvore: ‘O umbandista não precisa de uma catedral suntuosa como só o gênio humano é capaz de edificar. Ele só precisa de um pouco da natureza, como só Deus foi capaz de criar’. Hoje somos operários de Deus ajudando a restaurar a natureza. O Santuário Nacional da Umbanda, além de ter atingido seu objetivo inicial, transformando-se em local seguro e adequado às práticas das religiões de matrizes africanas, transformou solo árido e devastado em espaço verde e vivo. Também é ambiente rico para preservação da cultura africana através de pesquisas acadêmicas de inúmeras universidades, nacionais e do Exterior, como França, Portugal, Londres e Rússia. Tem sido utilizado por mídias nacionais para matérias com múltiplos enfoques, como programas de TV. É local de encontro para fóruns anuais e modelo para criação de outros espaços similares em outros Estados da União, como o de Caxias do Sul (no Rio Grande do Sul). Por tudo isso o santuário recebeu a denominação de meca dos umbandistas, um local onde todo umbandista deve ir uma vez na vida!

Vem muita gente de fora da região para o santuário? Tem ideia de quantas pessoas de fora visitam o espaço a cada mês?
Por ser a meca do umbandista é conhecido nacional e internacionalmente, portanto, recebemos excursões de todos os Estados e, muitas vezes, somos surpreendidos com estrangeiros que, em visita ao Brasil, pedem aos amigos e/ou parentes que os tragam aqui. Já encontramos veículos com placas da Argentina, Paraguai e Uruguai. Também já recebemos visitas de norte-americanos, africanos, italianos, ingleses e suecos.

O santuário conta com 645 mil metros quadrados, praticamente no meio de floresta de Mata Atlântica, e menos de 5% de área construída. O que isso significa para a preservação do meio ambiente?
Isso comprova a preocupação com a natureza. Fazemos uso de uma pequena parcela, mas recuperamos e preservamos não apenas a área destinada ao santuário, como também todo o entorno, totalizando o dobro desta área. Esta é a forma de devolvermos à mãe natureza uma parte de tudo o que ela nos oferece.

Como sente que o Grande ABC acolheu o santuário? Por quê?
O Grande ABC nos acolheu muito bem. Atualmente é muito raro encontrar oferendas em esquinas, praças e outros espaços públicos. E quando ocorre é muito mais em razão da falta de conhecimento de quem o faz.

Quais são os preceitos da umbanda e como o senhor sente que as pessoas a veem?
A umbanda é uma forma de espiritismo singelo, sem o elitismo que dominou o início do espiritismo no Brasil, onde apenas pessoas notáveis em vida poderiam se manifestar. Zélio Fernandino de Moraes (fundador da umbanda) ensina que, ‘com os espíritos elevados aprenderemos; aos atrasados ensinaremos e a nenhum negaremos uma oportunidade de se comunicar’.

Como o senhor vê a questão da intolerância religiosa, racial e de gênero? O que é preciso fazer para combater esse mal?
A intolerância é ensinada e apreendida. Ninguém nasce intolerante. Alguém se torna intolerante quando outro alguém ensina que ‘este’ Deus é melhor que ‘aquele’, ou, ainda, só quem é rico e culto tem valor, por isso pobre deve ser desprezado. Fariam melhor se entendessem que riqueza, posição social e hierárquica não são sinônimos e que o ideal é ser bom. Quem tem bondade respeita diferenças, compreende e aceita opiniões distintas das suas.

O senhor se lembra quando teve o primeiro contato com o Diário?
Quando ainda era chamado de News Seller e era distribuído aos domingos.

Lembra-se também quando o Diário publicou a primeira reportagem a seu respeito e por qual razão?
Foi em 1981, na inauguração do Santuário Nacional da Umbanda, no fim da administração do prefeito Lincoln Grillo (Santo André).

Qual a importância do Diário para o debate em torno dessas questões?
Um veículo de comunicação é de vital importância para que as ações nesse sentido tenham publicidade e alcancem aqueles que não tenham conhecimento dessas questões, esclarecendo e desmistificando tabus. O Diário é uma publicação séria, de amplo alcance e necessária para a sociedade.

O senhor faz parte de organizações que visam a união religiosa. No que consiste? Quais as maiores batalha e dificuldade para unir as crenças?
Sim, a Federação Umbandista do Grande ABC (mantenedora do Santuário Nacional da Umbanda) faz parte do Fórum Inter-Religioso de Santo André, do qual fazem parte diversos representantes religiosos com a missão de aniquilar qualquer forma de discriminação e intolerância religiosa. Este fórum foi constituído em 2013. No dia 14 de junho haverá um evento em Santo André para que cada um possa falar um pouco do que professa sua fé e mostrar a todos que é possível estarem todas juntas num único espaço e em total comunhão. A maior e mais difícil batalha é a falta de conhecimento, ou ignorância, no bom sentido, pois as pessoas tendem a temer e se afastar daquilo que não conhecem. As barreiras são de difícil transposição quando as pessoas não estão abertas a ouvir, e fica ainda pior quando alguém ensina o tempo todo que apenas ‘esse’ Deus é bom, ‘aquele’ outro só faz maldades e traz mazelas.

Como acha que o Diário pode auxiliar para que essa união efetivamente ocorra?
O maior auxílio que o Diário pode oferecer é a publicidade, o chamamento e a cobertura desse evento, bem como notas sobre as ações do Fórum – que não tem partido político, mas tem tido o apoio da municipalidade andreense.

Na sua opinião, o que o Diário poder fazer para fortalecer a cultura umbandista?
Ao divulgar o trabalho realizado pela família umbandista, o Diário desmistifica, antes de tudo, o que é uma religião de matriz africana e, com isso, fortalece essa cultura e o belo trabalho que é feito em nome da religião. Convido o Diário a conhecer a Casa de Pai Benedito de Aruanda, em São Caetano, que, diferentemente do santuário (local para as práticas religiosas), é um espaço de atendimento aos necessitados. Nunca cobrou e não cobra nada pelo atendimento, que atualmente passa de 200 pessoas por dia.

Se pudesse realizar qualquer feito no Grande ABC, qual seria?
Concluir o Santuário Nacional da Umbanda, realizando meu sonho de inaugurar a imagem de Nosso Senhor Jesus Cristo, que na umbanda é Oxalá (pronta desde 2007), cuja instalação foi prejudicada, ou melhor, impedida pela burocracia.

Que futuro espera para o Grande ABC?
O Grande ABC está para São Paulo como o Sol está para o Brasil. Então só posso esperar um futuro de glórias. 




Comentários

Atenção! Os comentários do site são via Facebook. Lembre-se de que o comentário é de inteira responsabilidade do autor e não expressa a opinião do jornal. Comentários que violem a lei, a moral e os bons costumes ou violem direitos de terceiros poderão ser denunciados pelos usuários e sua conta poderá ser banida.


;