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Quem combinou com a ômicron?
Antonio Carlos do Nascimento
17/01/2022 | 08:11
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Prognosticar é prever com base em indícios, então, é abstrair a imprevisibilidade, pois, de outro modo estaríamos profetizando. E com o aceite dessa assertiva, podemos identificar milhares de profetas distribuídos pelo mundo, explicando o futuro póspandêmico. Então, eventos com dezenas de milhares de pessoas têm seus ingressos esgotados, turnês de famosos artistas com agendas completas e destinos turísticos sem vagas para 'bolsos curtos', para não estender a lista dos videntes.

O primeiro grande erro desta condução lotérica é tentar enxergar a doença aguda pelo Sars-CoV-2 com as mesmas lentes que observamos todos os outros vírus capazes de promover grandes devassas. Sua capacidade mutagênica, até onde sabemos, é sem precedentes em tal competência destrutiva e não estamos seguros, ao menos por enquanto, que suas novas apresentações sejam progressivamente mais dóceis.

O segundo equívoco é avaliar esta primeira variante, arrefecida de alta competência mortífera, como fosse um reforço vacinal, compreendendo que a ameaça foi domada. Ainda que isso seja possível, estamos admitindo a inocência deste agente infeccioso por pouquíssimas particularidades que conhecemos de sua nova versão, contudo, argumentos muito frágeis para festejarmos em meio aos nossos escombros.

Sabe-se que os receptores celulares para a ômicron são diferentes daqueles utilizados pelos modelos mais agressivos do Sars-CoV-2 e o fato de as células pulmonares lhe serem pouco receptivas, a ocorrência de síndrome respiratória grave ocorre raramente nesta nova onda de contágios. Vê-se ainda que indivíduos submetidos a esquema vacinal completo dificilmente desenvolvem gravidade suficiente para impor internações.

Porém, embora a morte por doença respiratória por agressão pulmonar direta não pareça compor no universo de perspectivas para pessoas totalmente vacinadas neste novo momento pandêmico, é preciso voltar o olhar para o enorme contingente de crianças, só agora com permissão oficial para imunização, além de pessoas fragilizadas por tratamentos ou condições específicas.

Muito mais incerto e talvez o maior ônus residual de todo esse processo devastador é o que restará de prejuízo funcional aos organismos sobreviventes à Covid-19, no médio e longo prazos.

Com certeza na doença aguda este vírus é capaz de provocar alterações no tecido nervoso e neste quesito a perda de olfato e variáveis deficits cognitivos foram as ocorrências mais frequentes. A dúvida está debruçada sobre qual será a extensão real na permanência desses danos e seus desdobramentos.

Estudos recentes apontam que número considerável de pacientes desenvolveram diabetes tipo 1, por destruição viral das células pancreáticas produtoras de insulina. A deflagração de doenças autoimunes é mais uma das peripécias desse habilidoso agente infeccioso.

As vacinas desenvolvidas para imunizar contra a Covid-19 protegem nossos organismos por apresentar proteína (ou proteínas) da cápsula viral ao nosso sistema imunológico, sem que haja invasão celular pelo Sars-CoV-2, tornando impossível danos celulares agudos ou permanentes.

Por outro lado, a infecção por este vírus também promove imunização em variadas proporções, mas nem sempre na relação direta com a gravidade da doença que causou e, pior ainda, talvez deixando sequelas irreparáveis.

É dito que na Copa do Mundo de 1958, antes do jogo contra a antiga União Soviética, após ouvir as complexas orientações do técnico para uma jogada que resultaria em gol brasileiro, o craque Garrincha teria perguntado ao treinador: "O senhor já combinou com os russos?"

E por aqui, quem combinou com o vírus? 

Antonio Carlos do Nascimento é doutor em endocrinologia pela Faculdade de Medicina da USP e membro da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia. 




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