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Livro traz as mentiras que viraram verdades de David Nasser
João Marcos Coelho
Especial para o Diário
11/11/2001 | 18:00
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Instrumento de tortura, monstro, velha concubina, amante consentida, instrumento e cúmplice – estes foram os apelidos que o jornalista David Nasser (1917-1980) deu à máquina de escrever Royal que o acompanhou ao longo de toda a controvertida carreira que fez dele o mais influente e conhecido jornalista, ao lado do fotógrafo francês Jean Manzon, na revista semanal O Cruzeiro. A publicação foi o carro-chefe do império de Assis Chateaubriand, o Chatô, e chegou a tiragens de 700 mil exemplares, uma das maiores na história da imprensa brasileira.

Nasser começou a carreira em O Globo – onde, dizia, comprou a Royal do próprio Roberto Marinho; dizia e mostrava um recibo amarelado que mandou emoldurar e botar na parede de casa, onde não se conseguia distinguir a assinatura – e decolou em O Cruzeiro.

Ainda na casa dos 20 anos, servia fervorosamente ao Departamento de Imprensa e Propaganda, o DIP do Estado Novo de Vargas (como, aliás, Chatô), e terminou a carreira como porta-voz da Scuderie Le Coq, outra famigerada organização, desta vez o Esquadrão da Morte carioca. Seu caixão foi envolvido, por sua vontade, numa bandeira do Esquadrão.

Como se vê, escrúpulo, ética, compromisso com a verdade e profissionalismo no exercício da profissão passaram ao largo da carreira de David Nasser, esmiuçada pela primeira vez – e com um admirável trabalho de pesquisa – pelo jornalista Luís Maklouf Carvalho no livro Cobras Criadas (Editora Senac, 600 págs., R$ 45). Todo o talento de jornalista Nasser utilizou ora em proveito próprio, barganhando com poderosos da política e da economia (até uma fazenda ganhou em troca de reportagens), ora servindo aos interesses de seu não menos venal patrão Chatô.

Até agora, sabia-se que as reportagens sensacionalistas que fizeram a glória de David Nasser e de seu parceiro fotógrafo Jean Manzon em O Cruzeiro tinham origens duvidosas e pouco compromisso com a verdade dos fatos. O livro de Maklouf acaba com as dúvidas. A dupla delirava sem limites – e de preferência com conseqüências lucrativas.

A desonestidade, Maklouf mostra com todas as letras, estendia-se principalmente aos entrevistados. Foi assim que em 1946 eles publicaram a famosa foto do deputado Barreto Pinto, amigo pessoal de Getúlio Vargas, de fraque e cueca samba-canção; ou do médium Chico Xavier, na época absolutamente recluso e hostil à imprensa, deitado numa banheira. Nasser foi mais longe: vestiu-se de mulher e Manzon fotografou-o como se fosse Madame Shiang Kai-Shek, então em visita ao Brasil. Claro, foto embaçada, de longe, onde não se define o rosto.

A dupla Nasser-Manzon consolidou-se a partir de 1943, quando o fotógrafo francês chegou ao Rio de Janeiro depois de brilhantes passagens pela revista Match, coberturas da guerra civil espanhola (1936-1939) e sobretudo por uma foto sensacional do mitológico bailarino russo Nijinsky tentando dançar (Nijinsky estava internado em um hospício, às vésperas da morte).

Ele veio convidado pelo cineasta brasileiro Alberto Cavalcanti, que o recomendou para um emprego no DIP de Getúlio. A dupla utilizou um vasto arquivo de fotos feitas por Manzon durante o período em que trabalhou para o DIP.

Pois com este arquivo e a imaginação delirante de Nasser, inventaram dezenas de reportagens (como a do trecho nesta página: Nasser jamais esteve no avião que sobrevoou pela primeira vez uma aldeia xavante, nem Manzon a fotografou; foi feito um sofisticado, para a época, trabalho fotográfico em cima de filmes originais em 35 mm, feitos meses antes em uma viagem oficial do governo Vargas).

Mas David Nasser também tinha um lado bem mais simpático e menos venal. É sua faceta de letrista de alguns dos maiores sucessos da música brasileira. A começar com Canta Brasil, feita com Alcir Pires Vermelho, e Nega do Cabelo Duro, de 1940.

Luiz Maklouf Carvalho escreveu um livro apaixonante, que se lê como uma enorme, perigosa e fascinante aventura. Pena que um período tão longo do jornalismo brasileiro tenha tido como parâmetros a corrupção, a falta de compromisso com a verdade e a venalidade em estado puro.




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