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Incríveis e 'desinfantilizados'
Cássio Gomes Neves
Do Diário do Grande ABC
10/12/2004 | 08:56
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Talvez fosse possível encontrar, guardados os obstáculos cronológicos e autorais, o clã Pêra no mesmo subúrbio em que vivem os Flintstones e os Simpsons. Cada qual a seu modo particular, todos são interpretações da família de classe média idealizada, acomodada na casa com cerquinha branca e que apara a grama domingo sim, domingo não. Entregues à felicidade do tédio, os Pêra constituem ademais uma família de super-heróis inativos. Heroísmos domésticos e míticos, os dois focos entre os quais oscila Os Incríveis, a mais fresca animação a deixar o forno dos estúdios Pixar (Procurando Nemo e Monstros S/A), em parceria com a Disney, e que estréia nesta sexta em 12 salas da região.

Só para situar o leitor: Os Incríveis é o penúltimo produto dessa dobradinha. O contrato da joint venture cinematográfica se encerra com o lançamento de Carros, em 2006, e o rompimento, aparentemente irreversível, fará a Disney perder sua galinha dos ovos de ouro. Prestes a se tornar uma casa independente, a especialista em computação gráfica Pixar garantiu à sócia um saldo de quase US$ 3 bilhões, desde Toy Story (1995) até agora.

Antes que se ouça o anunciado canto do cisne, eis Os Incríveis, do mesmo Brad Bird que dirigiu o simpático Gigante de Ferro (1999). O desenho é um esforço para emparelhar com o contexto temático do cinema de espetáculo deste século, que não teve o menor pudor em se impregnar da mitologia pop para renovar, entre aspas, conceitos caducos de polarização. Super-heróis como Homem-Aranha, X-Men e Hulk tornaram-se novas balizas do antagonismo absoluto. O esgotamento já se anuncia e Os Incríveis é sintoma disso.

Beto Pêra, o chefe da família protagonista, era conhecido como Senhor Incrível e dono de uma força bruta descomunal há 15 anos. Diante dos prejuízos e da sucessiva destruição do patrimônio público, tanto ele como todos os super-heróis foram proibidos pelo governo de exercer seus poderes. Passa o tempo e Beto, casado com Helena, heroína que respondia pelo codinome Mulher-Elástico antes de também pendurar o uniforme colante, trabalha agora como corretor de seguros. Não se adaptou, porém, ao cartão de ponto. Ao lado do amigo e igualmente ex-herói Gelado, percorre a cidade em patrulhas clandestinas à noite.

Afora a barriguinha, Beto ganhou nesses anos três filhos, cujos genes reservam habilidades sobre-humanas: a introvertida Violeta, que possui o poder da invisibilidade; o espoleta Flecha, brindado com a velocidade da luz; e o bebê Zezé, cujas capacidades permanecem incógnitas. São coagidos a voltar à ativa com o advento do vilão Síndrome e de suas máquinas assassinas, que planeja vingar-se do Senhor Incrível, responsável por constrangê-lo no passado, quando heroísmo ainda estava contido na legalidade

Tecnicamente irretocável e com censura livre, Os Incríveis pode causar um sobressalto a quem habituou-se às jornadas emocionais da Pixar. Tiroteios e cenas de tortura conduzem o estúdio à "desinfantilização". Contraditório, uma vez que as caricaturas do universo adulto que eram sua especialidade parecem rumar para o lugar-comum em Os Incríveis. Se o filme insinua que o super-herói é um instrumento de resistência ao organismo estatal, recua da observação em favor do conforto da previsibilidade. E, tal qual Homem-Aranha 2, o longa de Bird reitera a necessidade dos mitos para a compreensão e o desenvolvimento das civilizações. Ah!, e é divertido também.




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