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Uma vida em (poucos) filmes
Cássio Gomes Neves
Do Diário do Grande ABC
31/10/2005 | 08:21
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Fernando Meirelles afirmou que nunca mais mencionaria Cidade de Deus (2002) quando encerrada, por ocasião das quatro indicações ao Oscar em 2004, a carreira de fundista do filme que funcionou como estilingue para sua reputação, nacional e internacional. Deve-se, portanto, considerar o livro Fernando Meirelles – Biografia Prematura (Coleção Aplauso, Imprensa Oficial, 388 págs., R$ 9) o bafo final de auto-avaliação do longa baseado no romance de Paulo Lins, bangue-bangue de calças curtas que antagoniza Zé Pequeno e Buscapé, visto por 3,2 milhões de espectadores nos cinemas brasileiros e o ponto de fuga do cinema nacional para olhares estrangeiros neste século – no site especializado IMDB (www.imdb.com), norte-americano, Cidade de Deus aparece como o 19º melhor filme de todos os tempos, segundo votação entre internautas.

Redigido pela jornalista Maria do Rosário Caetano, o volume traz na fachada um título que mata a pau, como diria a gíria: Biografia Prematura. Afinal, Meirelles tem 50 anos, vasta carreira na direção de TV e de filmes publicitários e quatro longas-metragens, coisa pouca para o que se imagina motivo de biografia de um cineasta. Um título ao mesmo tempo consciente e irônico, como boa parte do conteúdo do livro. E embora Cidade de Deus já deu o que tinha para dar, o filme é a justificativa principal desse retrato, tão precoce quanto necessário.

Meirelles já partiu para outra: O Jardineiro Fiel, sua primeira produção internacional, inspirada em romance de John Le Carré e ainda em cartaz nos cinemas. Na verdade, já enveredou para uma terceira na poeira de CDD (sigla carinhosa pela qual o próprio diretor se refere a Cidade de Deus): ao lado do parceiro Bráulio Mantovani, está concentrado no roteiro de Intolerância 2, um remake, ou melhor, um up-to-date do clássico Intolerância (1916) de D.W. Griffith (1875-1948).

Num depoimento em primeira pessoa, Meirelles restaura a infância em São Paulo, a puberdade tardia que atravancou sua adolescência, o curso até a formação na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP (Universidade de São Paulo), as primeiras iniciativas de ultraje ao rigor das regras televisivas com a produtora Olhar Eletrônico (que o cineasta co-fundou), a criação do personagem-repórter Ernesto Varela com Marcelo Tas, a solidificação da O2 Filmes como produtora de peças publicitárias e o desembarque no cinema que acarretaria em Cidade de Deus.

De gaiato – Cinema para Meirelles é conseqüência, não meta. Tudo começa com seu envolvimento acidental na direção de Menino Maluquinho 2 – A Aventura (1998), tópico no qual condena a estratégia de lançamento do filme infantil, atrapalhada segundo ele e que teria sacrificado seu sucesso de bilheteria. A seguir, comenta brevemente Domésticas – O Filme (2001), que co-dirigiu com Nando Olival.

Estaciona então em Cidade de Deus, o reator da luminosidade em torno de seu nome que culminou na biografia impressa. Retroage até a vontade de adaptar para o cinema O Matador, livro de Patrícia Melo que acabou transformado no filme O Homem do Ano (2003), de José Henrique Fonseca, que adquiriu antes dele os direitos de filmagem. Já ao livro de Paulo Lins, Meirelles chegou adiante de Daniel Filho e Cacá Diegues, outros diretores que demonstravam interesse em adaptá-lo para as telas.

Repassa a preparação dos atores, em grande parte estreantes em interpretação e associados ao grupo Nós do Morro, durante cinco meses. Detalha incidentes como o assédio – para não dizer ameaça – de traficantes sobre a equipe e o elenco durante as filmagens. Enfrenta, com os excessos inevitáveis da auto-preservação, a troca de tiros que se tornou a avaliação crítica do filme à época de seu lançamento, e que serviu para elucidar a fragilidade teórica de determinados núcleos da imprensa dita especializada.

Entre as barbaridades da crítica, que Meirelles contesta de forma mais apaixonada que meticulosa: Cidade de Deus foi freqüentemente interpretado por seus estilhaços sociológicos que pelos seus aspectos cinematográficos; foi desacreditado por não explicitar o contexto histórico que o circunda, alegação que aproxima uma tal leitura da padronização tão achincalhada nos produtos importados pelos mesmos críticos; e, entre as demais acusações, foi classificado como um Tarantino subequatoriano. Baita bobagem! Na melhor das circunstâncias, pode-se comparar o viés narrativo e estético de Cidade de Deus a uma obra de Martin Scorsese, com suas acelerações e frenagens, mais uma altíssima variedade de ângulos e movimentos de câmera, para exibir uma trama urdida entre personagens e seu respectivo meio ambiente, e as conseqüências de tal relação.

Biografia Prematura, com seu jeitão de auto-retrato leve e despojado, configura-se num documento suplementar sobre um dos mais importantes filmes destes tempos e sobre estes próprios tempos artísticos, para o bem e para o mal. Não é obra definitiva, nem procura ser. Trata-se mais de uma reflexão, na qual Meirelles analisa (jamais descarta) as pedras no meio de seu caminho. Uma parada para respirar antes que o diretor resolva concluir sua grande ambição autoral: fazer um filme da obra-prima de Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas. Ou filmar um épico, com requintes de Senhor dos Anéis, sobre os orixás do candomblé, protagonizado pelo astro Denzel Washington. No livro, isso é não mais que uma piada desse diretor que entrou de gaiato no cinema. Mas... nunca se sabe!



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